
Efetivar agendas ambientais, analisar dados e aprimorar processos, investir no desenvolvimento de pessoas e impulsionar a responsabilidade social. Ainda que alguns desses usos sejam menos evidentes, a inteligência artificial pode ser aplicada de diversas formas para potencializar resultados em empresas.
Um dos temas mais discutidos da atualidade, a IA vem transformado rotinas. Entre suas aplicações mais promissoras está justamente o fortalecimento das práticas ESG (meio ambiente, social e governança), cujo uso, embora ainda engatinhe, começa a se expandir no Brasil.
Algumas empresas e startups, principalmente as maiores, já utilizam a tecnologia para auxiliar nessas questões, afirma Rafael Kunst, professor do Programa de Pós-Graduação em Computação Aplicada da Unisinos. A aposta agora, que já começa a ser aplicada em maior escala, é o uso de agentes inteligentes para executar tarefas, como acessar sites e buscar dados — uma possibilidade que também deve ser aplicada em ESG.
— À medida que a tecnologia vai evoluindo, vai barateando e, certamente, vai começar a ser utilizada em maior escala também por empresas não tão grandes — destaca.
Há muitas oportunidades para quem deseja investir como negócio ou para empresas que querem maximizar operações.
— A IA em ESG ainda está no início. Não dá para dizer que é algo que está popularizado, mesmo entre as grandes empresas. Ainda tem bastante espaço para evoluir. Trabalhar com tudo isso pode ser beneficiado a partir da IA — frisa.
Ambiente: soluções para reduzir impactos

Cada vez mais, as empresas assumem compromissos com o meio ambiente — o E, em ESG. A IA pode ser uma aliada na busca por atingir metas de redução de impactos. Pode ser empregada na otimização de data centers, para a redução do consumo energético e de água (que são elevados, sobretudo para o treinamento de modelos); para otimizar a logística de resíduos e reciclagem; no monitoramento de emissões e pegada de carbono; no acompanhamento de impactos na biodiversidade; entre outras frentes, conforme o especialista.
Startup de Porto Alegre que trabalha com foco em desenvolvimento de soluções de sustentabilidade, a Green Thinking emprega IA em seus processos. Além de trabalhar com a destinação de resíduos, uma das novas frentes de atuação da empresa é o desenvolvimento de uma ferramenta de inteligência artificial generativa, que deve ser lançada em junho, em parceria com a PureAI.
Joana MarIA, como é chamada, é um “ChatGPT ambiental” — uma jovem cientista brasileira, originária da Amazônia, com profundo conhecimento sobre ciências naturais, meio ambiente, sustentabilidade, resíduos sólidos e ervas naturais. Joana responde dúvidas e fornece dicas de como adotar comportamentos mais sustentáveis e que agridam menos o meio ambiente.
— O grande objetivo é que a gente possa naturalizar a IA, visto que ela ainda não é 100% comum e amplamente difundida. Sabemos que, principalmente em zonas vulneráveis, nas periferias, as pessoas, especialmente os estudantes, não têm acesso. Então, além de poder auxiliar na formação e no processo de aprendizagem desses estudantes, das escolas públicas dessas zonas vulneráveis, o nosso objetivo também é contribuir no processo de transformação digital — explica Lucas Fontes, educador ambiental e diretor da startup vinculada ao Tecnopuc.
As novas tecnologias são importantes ferramentas para a catalisação da mudança de comportamentos, que é o que prega o ESG, ressalta Fontes.
As práticas de ESG não têm um manual que venha pronto para implementar na empresa, precisa adaptar conforme a nossa realidade e a cultura local. Não existe apenas uma solução ou uma tecnologia. Hoje, a IA tem um importante papel de acelerar o processo de transição para uma economia circular.
LUCAS FONTES
Educador ambiental e diretor da startup vinculada ao Tecnopuc
Operações mais estratégicas
A inteligência artificial também pode ajudar a garantir um modelo de operação mais sustentável. Na Lojas Renner. S.A., por um longo período, o desenvolvimento de produtos baseava-se em revistas e desfiles para observar tendências, demandando tempo e recursos. Agora, com a IA, a empresa analisa informações a partir de diversas outras fontes, como redes sociais e canais especializados, para tomar decisões mais rápidas e realizar apostas mais acertadas ao criar as peças.
Com esse modelo, é possível testar a aceitação de produtos em quantidades menores — assim, diminui-se a produção excessiva, focando naquilo que os clientes desejam comprar. A estratégia reduz o consumo de recursos naturais e o desperdício, além de resultar em maior produtividade e eficiência, conforme a empresa.
— A sustentabilidade e a inovação caminham juntas na jornada em direção a uma moda cada vez mais sustentável, com produtos e serviços de menor impacto socioambiental — afirma Eduardo Ferlauto, gerente geral de Sustentabilidade da Lojas Renner S.A.
Social: formação para impulsionar negócios e sociedade

As soluções tecnológicas também podem auxiliar na geração de impacto social positivo, promovendo o pilar S de ESG. Há diferentes maneiras de fazer isso, como por meio do desenvolvimento de pessoas. O Programa Ensino Digital, oferecido pela Dell, multinacional tecnológica que possui unidade em Eldorado do Sul, é um exemplo.
Eem parceria com a Universidade Estadual do Ceará (UECE), a empresa oferece cursos online gratuitos para educadores e estudantes, com foco na capacitação tecnológica e no uso de IA na educação. O objetivo é potencializar o ensino, facilitar o aprendizado dos alunos — atendendo a diferentes estilos — e garantir uma dinâmica melhor em sala de aula.
As aulas são oferecidas por meio da plataforma Dell Accessible Learning, que permite o ensino a distância com acessibilidade. Na formação em IA voltada aos estudantes, são abordados fundamentos básicos, as ferramentas disponíveis, a resolução de problemas e o desenvolvimento de habilidades práticas, críticas e criativas na relação com a tecnologia. O uso ético e responsável da IA também é um dos tópicos.
Já os educadores aprendem a coletar e analisar dados, bem como os cuidados necessários em relação à confiabilidade das informações.
O tema IA é tabu dentro da sala de aula — muitos educadores não se sentem confortáveis com o uso por parte dos estudantes. A situação motivou a promoção de orientações sobre a adoção responsável da tecnologia e seus potenciais.
A IA é uma realidade hoje, mas ela se tornará muito mais presente em alguns anos. Então, quanto mais tivermos um número de pessoas já capacitadas e preparadas para trabalhar com IA, mais a sociedade também estará preparada para lidar com situações diversas que a gente vai ter. Inclusive em relação ao mercado de trabalho.
LEONARDO TIARAJÚ
Philanthropy manager na Dell Technologies Americas
Lançado em 2024, o curso de IA está entre os três mais procurados da plataforma. Cerca de 1.850 educadores e 700 alunos já participaram. Municípios, organizações e escolas podem se inscrever a partir de editais.
Pessoas, processos e tecnologia
Empresa que desenvolve soluções para o transporte, a Randoncorp também aposta na formação como mecanismo de transformação. A companhia lançou o Brain, programa com foco em ações relacionadas à IA. Um dos pilares é a capacitação de colaboradores. Por meio de cursos na Academia Digital, os funcionários evoluem sua proficiência digital e aprendem sobre IA e como integrá-la ao trabalho.
O uso de IA é central na jornada de transformação digital da empresa, conforme Leandro Barros, que lidera o programa Brain na Randoncorp. É baseado em três pilares: pessoas, processos e tecnologia — pessoas de diferentes áreas, empoderadas e capacitadas, melhorando processos estratégicos para a organização, por meio de tecnologia avançada. Assim, contribuem para as ambições de crescimento da empresa.
Os colaboradores ingressam nos cursos já envolvidos em uma ideia de projeto a ser implementado na empresa, identificando oportunidades em processos administrativos ou industriais e desenvolvendo soluções, de modo a aprender na prática enquanto evoluem o negócio. Cerca de 130 colaboradores já participaram.
A companhia já percebe ganhos de produtividade, eficiência e redução do consumo de energia com as ações. Barros acredita que é papel da empresa potencializar esse desenvolvimento no ambiente de trabalho:
— Existe uma preocupação muito grande nossa aqui na Randoncorp de manter a força de trabalho relevante e ativa dentro de uma jornada de conhecimento. É fundamental essa responsabilidade social.
Além de formações, há outros potenciais de aplicação da tecnologia nas práticas sociais, lembra o professor Rafael Kunst, da Unisinos: para a redução de desigualdade nas empresas; na filtragem de currículos, com potencial para reduzir vieses em processos seletivos se bem utilizada; na promoção da inclusão; no monitoramento de saúde; no acompanhamento em tempo real da segurança do trabalho e uso de EPIs; no engajamento dos colaboradores; em programas de responsabilidade social.
Apesar do corrente medo de substituição da mão de obra, Kunst vê, a longo prazo, potencial social na IA de melhorar as condições de trabalho ao providenciar mais tempo para tarefas humanas, como ser criativo.
Governança: análises para decisões melhores e mais rápidas

A governança talvez seja a prática onde a IA esteja mais madura atualmente, na avaliação de Kunst, professor da pós-graduação da Unisinos. Por ter como uma das principais habilidades o processamento e análise de grandes volumes de dados, a tecnologia pode ser empregada em organizações para a transparência, identificação de fraudes, compliance com leis, normas e leis de proteção de dados e até mesmo produção de relatórios sobre ESG.
A área é uma das principais demandas de atuação da SOU.Cloud, empresa de Novo Hamburgo especialista em tecnologia em nuvem e IA, que desenvolve soluções para outras empresas.
As soluções de IA desenvolvidas incluem análise de contratos e termos, para identificar riscos e sugerir as melhores alternativas jurídicas, fiscais e financeiras; análise de risco físico e de negócio; análise de crédito; precificação; análise de grandes volumes históricos de dados e documentos em tempo real, com questionamentos à IA, utilizado em conselhos para acompanhamento dos resultados financeiros da empresa; entre outros.
O uso garante longevidade e evolução às empresas, além da diminuição de erros de decisão, pois há menos falhas na análise de dados ao reduzir o eventual risco eventual trazido pela atividade humana, afirma Rodrigo Castro, CTO da SOU.Cloud.
Olhando para a governança, a primeira coisa que as empresas percebem de valor (em IA) é a confiabilidade das informações. Está em um dos pilares da governança corporativa, inclusive. Ter dados não confiáveis leva a tomada de decisões insuficientes.
RODRIGO CASTRO
CTO da SOU.Cloud
Além disso, ao trazer outra visão de dados, a ferramenta auxilia na tomada de melhores decisões em menor tempo, garantindo produtividade e diferencial competitivo, frisa Castro.
Contudo, alerta que, para que favoreça a governança, a tecnologia precisa estar presente nas áreas afetadas pela decisão a ser tomada. Também é necessária uma quantidade de dados suficiente para criar modelos que forneçam insights relevantes. Mais importante ainda é a proteção dos dados da empresa.
Métricas e metas de resultados para ações sustentáveis, de governança e sociais podem serem alcançadas mais facilmente com o auxílio da tecnologia, ressalta o CTO:
— A IA vem como um ferramental de gestão para diminuir os custos de execução e para escolher apostas mais certeiras.
Resposta frente a emergências
A tecnologia também pode auxiliar na gestão de ativos das empresas, garantindo a eficiência das operações. O recurso foi fundamental para consertar a maior estação de tratamento de água da Corsan com rapidez após a enchente de 2024. A Corsan recuperou a operação em cerca de 20 dias com a ajuda de IA, por meio de visita virtual à ETA Rio Branco, em Canoas, que atende 110 mil imóveis.
A ação foi possível devido ao programa Infrainteligente, no qual a Corsan produz um inventário de ativos e cria "gêmeos digitais" — ambientes virtuais idênticos aos reais. A medida permite realizar visitas virtuais às instalações, conferindo equipamentos e seu funcionamento.
Além disso, por meio de tecnologia preditiva, é possível realizar simulações e previsões, com base em padrões operacionais e indicadores da saúde do ativo. São realizadas correlações entre diversos parâmetros, como curvas de operação, qualidade, quantidade e normativas técnicas e ambientais. O principal foco do mapeamento é a prevenção de manutenções e a modernização da infraestrutura.
— A inteligência gera muitas informações preditivas. Conseguimos atuar de uma forma mais antecipada, de precaução, e não só na parte de operação. Então, tem todo um planejamento por trás que a IA consegue ajudar, para a gente poder ir melhorando o atendimento — explica o gerente de Cadastro da Corsan, Jean Carlo Galarça.
Especialmente durante eventos extremos, também contribui ao trazer assertividade à operação e acelerar a retomada dos serviços à população. O mecanismo auxiliou na tomada de decisões naquele cenário crítico, permitindo reverter, em um curto período, falhas nos sistemas alagados, lembra Galarça:
— Foi possível agilizar, saber exatamente quais eram os equipamentos que tinham sofrido impacto e já fazer toda a movimentação para que, no primeiro momento que o nível diminuísse, já estivéssemos preparados para repor os equipamentos e fazer a retomada do abastecimento. Se não fosse o levantamento, teríamos, com certeza, demorado talvez o dobro do tempo que foi preciso.
O recurso tecnológico também servirá para planejar ações necessárias de proteção dos sistemas para a possibilidade de novos eventos, buscando mitigar impactos. A Corsan implantará o programa em todos os 317 municípios da área de atuação.
Nem tudo exige IA
Em meio à empolgação corrente, todos desejam ter uma solução baseada em IA, inclusive para posicionamento comercial. Em alguns casos, não se trata nem mesmo de uma inteligência artificial, mas a solução é vendida como tal.
Nem sempre a IA é a melhor alternativa. O investimento em outra tecnologia pode ser menor — já que os custos com IA são caros — e atender ao problema, lembra o professor Rafael Kunst.