O Brasil caminha para regulamentar o mercado de carbono. Ainda em tramitação, o projeto de lei (PL) 182/24, pode ser aprovado antes da COP30, que ocorrerá no Pará em novembro de 2025.
Em entrevista a Zero Hora, a advogada especialista na regulação das políticas de mudanças climáticas Natália Braga Renteria explica a diferença entre mercado voluntário e regulado, fala sobre precificação e sobre os tipos de créditos. Natália é mestre em Direito Internacional e Europeu e doutora em Governança Climática, ambos pela Université Catholique de Louvain, na Bélgica.
O que é e como funciona o mercado de carbono?
Os mercados de carbono surgiram para colocar um preço no carbono e para trazer um mecanismo a mais para os atores envolvidos nessa transição para uma economia de baixo carbono, de conseguir ter acesso a novos recursos e financiar essa transição. Há dois tipos de mercado de carbono. O primeiro é o mercado de carbono voluntário. Nele, as empresas fazem seus compromissos de descarbonização de maneira autônoma, voluntária. Elas se comprometem a reduzir as suas emissões e parte desse compromisso pode ser a compra do crédito de carbono. O mercado voluntário é baseado em compromissos empresariais, corporativos e são comprados créditos de carbono de projetos. Por outro lado, você tem o chamado mercado de carbono regulado, que ao contrário do voluntário, é uma política pública que impõe a determinados atores econômicos um compromisso, uma obrigação de reduzir as suas emissões. Ele acorda a cada ente que faz parte desse ambiente regulado o direito de emitir uma quantidade de carbono. Se passar, tem que comprar créditos dentro desse ambiente e se ficar abaixo desse limite que foi estabelecido, pode vender. São duas vertentes: uma é a política pública do mercado regulado e a outra é o mercado voluntário baseado em compromissos corporativos. Eles têm objetivos distintos para públicos distintos e não tem um melhor do que o outro, eles se complementam. O mercado voluntário pode funcionar muito bem sem o regulado, e vice-versa. No Brasil, a gente tem uma especificidade de que a lei que está sendo desenvolvida vai ter uma ponte entre eles. Você vai poder usar uma porcentagem limitada de créditos do mercado voluntário para auxiliar esses atores regulados com créditos vindos do mercado voluntário. Mas isso é limitado, é uma especificidade da lei que está sendo criada no Brasil justamente para estimular o mercado voluntário. A maioria do mercado voluntário no Brasil tem a base em créditos florestais, em créditos de soluções baseadas na natureza, que é quando você consegue valorizar os ativos da floresta gerando soluções climáticas que vão remunerar, financiar essas atividades de preservação florestal ou de recuperação. No caso do Brasil, qual é o mercado já estabelecido para esses créditos do mercado voluntário? São os créditos de preservação da floresta em pé, são os projetos de conservação para evitar que a árvore caia. E por outro lado, vocês têm os projetos de remoção de carbono, que são aqueles de restauro florestal. Esse mercado está estabelecido no Brasil, o de preservação muito mais do que o de restauro. O de restauro está sendo construído, mas como a gente tem essa base de créditos florestais muito forte no país, somos um país de floresta tropical, o nosso mercado voluntário está muito ligado a esse tipo de crédito. É para valorizar esse ativo florestal que está sendo pensada essa ponte entre o mercado voluntário e o mercado regulado brasileiro, para ter mais uma demanda para esses créditos do mercado voluntário.
No mercado voluntário as empresas decidem comprar por si só ou existe algo que imponha isso?
A gente teve, depois do Acordo de Paris, assinado em 2015, um novo posicionamento do setor privado no mundo em relação ao clima. Porque antes, quando se falava de obrigações climáticas, era muito entre Estados. Os países tinham que ter compromissos. Com esse novo Acordo de Paris, as empresas foram chamadas a assumir compromissos. Mas como as empresas não podem fazer parte da convenção climática, houve todo um movimento internacional de criar iniciativas empresariais. Como são compromissos estabelecidos pelas próprias empresas, não há uma imposição, é por isso que ele é chamado voluntário. No entanto, essas iniciativas internacionais têm algumas diretrizes justamente para evitar que cada um fale uma coisa diferente ou que fique um compromisso vazio. Essas empresas, apesar de elas se autodeterminarem, muitas delas, ou pelo menos a maioria e as mais sérias, seguem essas diretrizes. Qual a lógica do mercado voluntário? Você, primeiro, faz esforço interno dentro do seu processo produtivo de diminuir a emissão de carbono e aquilo que for muito difícil, que você realmente não conseguir, aí sim você compra o crédito do mercado voluntário. O crédito do mercado voluntário, para ele ser bem utilizado, tem esse caráter secundário. Ele nunca é a atividade principal de descarbonização de uma empresa. Ele é sempre combinado com outras atividades de descarbonização.
Quais são os setores, tipos de empresas, de negócios, que vão ser obrigados a fazer essas compras?
Existe uma regra no Brasil que todos os nossos compromissos climáticos são chamados de economy wide, ou seja, eles valem para todos os setores econômicos. O Brasil, quando apresentou sua obrigação climática na ONU, foi um dos poucos países que assumiu essa responsabilidade de fazer o esforço com todo mundo. Isso se reflete na nossa lei. O PL que está sendo discutido diz que os setores regulados podem ser qualquer setor da economia. No entanto, a implementação será gradual, ou seja, primeiro os setores que são mais emissores de carbono e em seguida vai caminhando para outros setores. Inicialmente falamos principalmente dos setores de energia, setor de cimento, siderurgia, que são aqueles setores que realmente têm uma quantidade de emissão muito importante. Existem outros setores que estão sendo considerados também, como papel celulose, que não chegam a ser superemissores, mas que acabam tendo uma atividade econômica importante no Brasil. E por que essa lógica de você fixar essa obrigação inicialmente nesses setores mais intensivos em carbono? O mercado regulado que a gente está adotando no Brasil é baseado no modelo europeu de cap and trade. Esse modelo europeu de mercado regulado segue essa lógica de você ir para setores industriais de energia e esses intensivos, onde você consegue medir muito bem o que está sendo expelido na atmosfera. Imagina só, você chegar para uma empresa, faz todas as medições de quanto ela está emitindo, você dá um direito para ela emitir. Se você erra sua conta, você acaba prejudicando os setores econômicos importantes. Toda essa medição tem que ser muito bem-feita.
Se alguém está interessado em vender créditos, tem algum profissional para fazer a mediação com quem está interessado em comprar?
No Brasil, quando você fala vender créditos, a gente já vai para o mercado voluntário. O ativo que a gente fala do mercado regulado é permissão, o governo dá permissão de emitir. O que acontece hoje no Brasil? Temos poucos projetos sendo desenvolvidos ainda perto do potencial que podemos chegar. Hoje estamos emitindo em torno de 100 mil toneladas de crédito sendo emitidas no Brasil e podemos chegar até 1 bilhão, que é o nosso potencial. A verdade é que o nosso crescimento ainda é exponencial. Temos poucos projetos ainda. Dentro dessa lógica, acaba que quem faz o crédito, seja ele de conservação ou de reflorestamento, acaba vendendo diretamente o seu crédito. Tem muito pouco intermediário. Até existem intermediários no mundo, porque é um mercado que está crescendo lá fora. Isso está mais desenvolvido do que aqui. Mas, a verdade é que, na prática, se você quer comprar um crédito, você vai direto no desenvolvedor daquele projeto e acaba negociando com ele. Mas, sim, existem empresas intermediadoras e eu acho que é um ator que tende a crescer.
Já se pode falar ou ainda é cedo para falar em precificação?
Existem dois tipos de precificação no mercado. Existe a precificação de mercado de conservação florestal. Eu estou dando o exemplo florestal, porque é o mercado que a gente tem mais dados. O setor agro está chegando agora. É um setor superimportante, que eu quero destacar, porque acaba que eu estou falando do florestal, dando mais ênfase, porque realmente está um pouco mais desenvolvido. Mas o agro está chegando com força e vai crescer. O crédito de conservação é mais barato, porque a implementação de um projeto de conservação exige menos capital. Podemos falar entre 5 e 15 dólares a tonelada, dependendo da qualidade do projeto. São créditos mais acessíveis. Quando se fala de créditos de restauro, falamos entre 30 e 50, ou até mais. A previsão é de crescimento desse valor, dependendo da qualidade do projeto. Não existe um preço único para tudo. Cada preço do carbono está ligado ao projeto que ele é desenvolvido. Porque cada projeto tem uma particularidade. Tem projetos que vão ter um apelo social maior, vão investir mais em biodiversidade. São os chamados cobenefícios. Quando um projeto tem bons cobenefícios sociais e ambientais, o preço sobe e são mais valorizados. Quando você não tem cobenefícios, o valor cai, e até são projetos que têm dificuldade de serem negociados.
O mercado regulado depende da lei que está sendo desenvolvida. Há expectativa de quando essa lei entrará em vigor?
Essa lei está sendo ativamente discutida desde 2021, quando teve o primeiro projeto de lei de mercado de carbono. Nesse último ano, teve bastante desenvolvimento da matéria. Tanto que, antes, tinha um projeto de lei na Câmara que não foi para frente. Mas esse último projeto de lei, que foi apresentado pela senadora Leila Barros (PDT-DF), no Senado, e depois ele foi para a Câmara, sob relatoria do deputado federal, Aliel Machado (PV-PR). Agora voltou para o Senado e está aguardando o despacho do presidente do Senado para determinar a continuidade desse projeto de lei. Existe uma expectativa muito forte que ele seja aprovado nos próximos meses. Eu acredito que ele vai ser aprovado antes da COP30 (ocorre em novembro de 2025). Se vai ser aprovado ainda este ano ou no início do ano que vem, existe uma conversa política ainda a ser desenvolvida. Mas o texto já está bastante desenvolvido e ele vem justamente nesse formato de instituir um mercado regulado do tipo que coloca um limite e as empresas escolhidas por aquela regulamentação vão passar a ter obrigação de reduzir as suas emissões para aqueles limites, com essa ponte para o mercado voluntário, podendo aceitar créditos vindos do mercado voluntário dentro de um limite, sem inundar o mercado regulado. Porque se você inunda o mercado regulado de créditos vindos do mercado voluntário, você acaba tirando a lógica do mercado regulado, que é ir apertando esses setores econômicos para eles irem realmente diminuindo as suas emissões.
Por que o agronegócio tende a ser um setor importante nesse mercado?
Hoje no Brasil, as emissões vindas do uso da terra têm uma parte importante das emissões brasileiras. Você tem o desmatamento ilegal, que é responsável por grande parte das emissões, mas você tem também as atividades agropecuárias, que são responsáveis por uma parte das emissões. Essas atividades têm características muito particulares, porque elas estão ligadas à produção, que não é uma indústria que tem chaminé ali emitindo CO². Tem de haver um controle, uma mensuração muito importante, desenvolver técnicas de medidas. O setor agro foi excluído do PL de carbono, então ele não vai ser setor regulado. Ele não vai entrar nessa obrigação de redução que o mercado regulado está trazendo. O setor agro, como ele é responsável por uma parte das emissões, se ele adotar novas práticas, se tiver uma política pública especial para ele, que auxilie essa transição, vai conseguir fazer economias de carbono. Ele tem uma avenida de oportunidades, de desafios também, mas de oportunidades a desenvolver nesse caminho de descarbonização. É por isso que eu digo que existe uma dificuldade de você desenvolver técnicas próprias para o nosso país, que são uma agricultura tropicalizada, diferente dos países do norte, mas uma vez que a gente estabelece as metodologias, e já avançamos muito nisso, você consegue não só ter créditos de carbono vindo do setor agro, no mercado voluntário, mas também consegue ligar a produção das empresas ao chamado de insetting, que é dentro da cadeia de fornecedores das empresas, e ter uma redução de carbono na própria cadeia de fornecimento. A verdade é que o setor agro no Brasil ocupa uma parte importante da nossa economia, que o desenvolvimento de técnicas e metodologias vai trazer também muitas oportunidades de redução de carbono, muitos caminhos diferentes, seja no mercado voluntário, seja ligado diretamente à cadeia de produção das empresas, que é o que a gente chama de insetting. O offsetting é mercado voluntário e insetting é a cadeia de produção das empresas. É por isso que eu digo que esses dois caminhos vão poder ser explorados pelo mercado, pelo setor agro, trazendo uma nova era, uma nova abordagem de tratar o carbono nessas atividades. Tudo que a empresa fizer dentro faz parte do plano de descarbonização dela. O que a gente chama de redução interna, seja na planta da empresa, seja na cadeia de fornecimento, a gente chama de insetting, que está dentro da empresa. Se ela precisa procurar essa solução fora, que é o crédito de carbono, a gente chama de offsetting. Normalmente as empresas combinam essas soluções para poder compor o seu plano de descarbonização.
Quais são os tipos de crédito?
São dois tipos de crédito hoje no mercado florestal. Atividade e reflorestamento. Porque a árvore, quando cresce, o carbono vai se fixando no tronco, e você vai medindo o crescimento desse tronco e ele vai ficando ali, removido da atmosfera. É por isso que o reflorestamento, o tipo de crédito, é de remoção. Por outro lado, outro tipo de crédito é o crédito de emissão evitada, que é o crédito da atividade de conservação. Na atividade de conservação, se você tem uma floresta que corre o perigo de ser derrubada, você faz um projeto que protege aquela área, evitando que aquela árvore caia. Porque quando ela cai, aquele carbono que estava preso no tronco é liberado na atmosfera. E, por outro lado, você tem a atividade de restauro, gerando crédito de remoção. São os dois principais créditos do mercado florestal no Brasil.
A mudança climática já é um risco materializado nos diferentes desastres e alterações que estamos vendo.
NATÁLIA BRAGA RENTERIA
Advogada especialista na regulação das políticas de mudanças climáticas
Quais países estão mais avançados nesse mercado?
Existem basicamente dois perfis de países no mundo hoje se colocando nessa nova arquitetura dos mercados de carbono. Você tem os países que têm uma emissão muito concentrada na questão energética, que são os países do norte global e os países do sul global, que têm uma característica de emissão distinta, que está muito mais ligada ao uso da terra, e a possibilidade de realizar projetos florestais. Você tem países do norte ligados a mercados regulados, que precisam mudar a matriz energética, e os países do sul, que têm um desafio maior na preservação e no restauro das suas florestas, são os países tropicais. Os mercados regulados são mais desenvolvidos nos países do norte. A Europa é um mercado de referência. Nos Estados Unidos, a Califórnia é mais desenvolvida. Até a China já está caminhando com os mercados dela também. Reino Unido também tem um mercado forte. Quando olhamos os números de mercado de carbono, tem Europa, Reino Unido, Califórnia, Canadá puxando isso do lado norte. No sul global, você tem os países se posicionando muito mais como fornecedores de créditos de mercado voluntário do que sendo modelo de mercado regulado. O mercado regulado, pela forma regulatória que ele é estabelecido, tem a finalidade de atacar esses setores que são intensivos em carbono, os setores industriais mais intensivos e os setores energéticos, que são concentrados nos países do norte. Os países do norte têm uma legislação de mercado regulado mais desenvolvida e os países do sul têm uma potência de fornecimento de créditos do mercado voluntário maior. Claro que o mercado regulado é sempre bem-vindo, porque ele direciona preço, ele desenvolve atividades, ele estimula as empresas a se protegerem de medidas internacionais e caminharem com a descarbonização. Agora, o Brasil tem potencial de se posicionar como um ator global no mercado voluntário com créditos agroflorestais. É importante também entendermos que estamos caminhando em um redirecionamento econômico para uma economia climática em que o carbono já virou um risco materializado. A mudança climática já é um risco materializado nos diferentes desastres e alterações que a gente está vendo. Estamos em um momento em que a economia vai ter de se reposicionar e que o ativo de carbono vai virar uma realidade para as empresas e para a população em geral.