A água que baixou da enchente deixou à mostra um problema antigo das cidades, que é a gestão dos seus resíduos sólidos. Para onde vai e o que é feito com o que não usamos mais? Para especialistas da área ambiental, as soluções começam ainda na indústria e passam pelo compromisso de cada um com os seus descartes.
O rescaldo da tragédia deixou montanhas de entulho jamais vistas no RS. No lixo, despejos de todo tipo, de itens pessoais e material de construção a eletrônicos e miudezas.
Para a doutora em Engenharia Civil, especialista em Economia Circular e pesquisadora do NucMat Unisinos, Joice Pinho Maciel, o maior recado deixado pela enchente em termos de geração de resíduos é de que “o barato custa caro”. Não tratar do lixo previamente vira um problema social sem precedentes diante das tragédias.
E aqui, entra a economia circular: o conceito trata de reutilizar, reciclar e reduzir o desperdício no consumo e na produção, fazendo com que os recursos sejam recuperados e reintegrados no ciclo na economia.
— O resíduo só é visto como problema quando existe a ausência da coleta e o caos é instaurado. Algo que ficou escrachado na crise climática — diz Joice.
A especialista reforça a importância dos planos de contingência, que começam muito antes das crises. As toneladas de resíduos tornaram visível um problema antigo. Ainda que exista uma diretriz nacional de destinação de descartes definida, a partir da Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS), a norma está muito distante da população. Segundo a especialista, falta um entendimento geral sobre a origem do lixo que é gerado e o que é de responsabilidade de cada pessoa sobre o que fazer com ele.
Patrícia Iglecias, professora e superintendente de meio ambiente da Universidade de São Paulo (USP), concorda que há um distanciamento da vida prática na questão do lixo.
— As pessoas acham que o caminhão passa e o lixo desaparece. Precisa ter uma comunicação com as pessoas — diz Patrícia.
O resíduo só é visto como problema quando existe a ausência da coleta e o caos é instaurado. Algo que ficou escrachado na crise climática.
JOICE PINHO MACIEL
Pesquisadora do NucMat Unisinos
Na origem das coisas, parte dos problemas está ainda na indústria. Tudo passa pelo desenvolvimento dos produtos, ou seja, na própria fabricação dos itens. Para o professor do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil da Unisinos e membro da Aliança Resíduo Zero Brasil (ARZB) Carlos Alberto Mendes Moraes, os volumes que saem para o mercado não acompanham a urgência de embalagens que gerem menos lixo possível.
— A indústria evoluiu muito nas últimas quatro décadas em controlar a poluição gerada dentro dos seus processos, mas carece de pensar os produtos numa lógica que não gere resíduo. Percebo que ainda somos um Fusquinha ao tentar implementar o que a Política Nacional de Resíduos Sólidos traz, enquanto o desenvolvimento de novos produtos tem velocidade de Ayrton Senna. A própria legislação estagnou em relação às normas para rotulagem ambiental — compara o professor.
O olhar para o impacto final dos produtos está alinhado às práticas ESG e começa a fazer parte da estratégia das empresas já na linha de produção. As iniciativas passam por criar embalagens que sejam amigas do ambiente. Ou seja, feitas de materiais facilmente recicláveis, em menos “camadas” e reutilizáveis quando possível.
— O consumidor não tem uma responsabilidade final sobre a embalagem que está consumindo. Claro que tem papel fundamental na separação do resíduo, mas só tem alguma decisão quando ela está vinculada à questão financeira, e o que determina isso é o poder aquisitivo. A grande massa consome produtos ultraprocessados e isso também está vinculado a uma embalagem de baixo valor agregado — aponta Joice.
A responsabilidade sobre o que se joga fora é, sobretudo, uma pauta compartilhada. Muito desse cuidado começa em casa, seguindo lições básicas de separação de lixo e de descarte correto de cada item.
— Melhor do que separar o lixo é não misturá-lo. Porto Alegre, por exemplo, tem coleta seletiva, então não misturar já é meio caminho andando. Tem de haver essa participação. Nenhum programa vai funcionar se não tiver adesão — diz Joice.
— Em termos de legislação, temos pontos bem bons, se a gente seguir. Há uma questão social que vem crescendo de as pessoas entenderem que a gestão começa por elas e que precisa haver uma mudança de governança — acrescenta Moraes.
Há uma urgência de ser compromissado com o planeta e não só com as suas contas.
CARLOS ALBERTO MENDES MORAES
Professor do Programa de Pós-Graduação em Engenharia Civil da Unisinos e membro da Aliança Resíduo Zero Brasil
Desafios da reciclagem
A separação dos itens que sobram e o seu posterior beneficiamento costumam ser um processo trabalhoso. Para a indústria da reciclagem e as cooperativas que fazem parte da cadeia, nem sempre há como entender quais elementos compõem o item descartado, de acordo com as classificações que constam no rótulo. Outro ponto é o preparo destes locais: em geral, as cooperativas carecem de investimento em infraestrutura adequada para o processamento de certos produtos.
Além disso, nem tudo que vai para os galpões pode ser reciclado. Basicamente, por uma questão de mercado que beneficie o lixo. Tecnologias ainda precisam ser desenvolvidas para transformar todo o material que vai fora em novos produtos. Um exemplo é o isopor, atualmente reutilizado até em rodapés de casas. Basta um resquício de gordura no material, no entanto, para que seja inviável reciclá-lo.
Para os especialistas, o evento climático que alagou o Estado trouxe, além da urgência de planos para o descarte em si, a necessidade de preparar a cadeia do lixo num todo.
— Plano de gerenciamento que precisa ser uma visão das cidades. É preciso saber o que fazer com o resíduo, onde deixá-lo, como separar. As prefeituras não conseguiam dar orientações corretas no auge da crise. As cooperativas estavam completamente sucateadas, o que é um indicador muito ruim para as cidades. Ou seja, o que poderia reduzir esse impacto, não funcionou — alerta diz Joice.
Importação é problema
Ainda que a legislação atual traga avanços na destinação dos resíduos sólidos, há pormenores que acrescentam problemas à cadeia. Um deles, em especial, é a importação de resíduos de outros países. A compra de material ocorre para cumprir uma parcela recomendada de materiais reciclados na composição das embalagens.
Patrícia Iglecias, pesquisadora da USP, diz que a prática ocorre por uma questão de custos. No entanto, é mais um barato que sai caro, já que não resolve os estoques internos de lixo e ainda traz novos acumulados de fora.
— Apesar de a lei ter colocado a obrigatoriedade para as empresas comprem das cooperativas, as companhias acabaram percebendo que seria mais vantajoso trazer resíduo de fora do país. Mas este trazer de fora via navio não traz uma mensuração do custo real, porque envolve a emissão do transporte — critica a pesquisadora.
O que diz a Política Nacional de Resíduos Sólidos
- Em 15 objetivos traçados, a PNRS busca instruir sobre a gestão de resíduos no país.
- A norma traz como pilares os conceitos de responsabilidade compartilhada e logística reversa (ações para recolher, transportar e dar destino adequado aos materiais, de modo que possam ser reutilizados ou reciclados). Na prática, são ações para recolher, transportar e dar destino adequado aos materiais, de modo que possam ser reutilizados ou reciclados.
- As diretrizes priorizam desde a proteção da saúde pública e da qualidade ambiental até o incentivo às práticas de redução dos resíduos.
- De acordo com a norma, Estados e municípios podem utilizar instrumentos da PNRS para organizar as cadeias de logística reversa, que é como são chamados os processos de recolhimento, transporte e destino adequado aos materiais.