Por Guilherme Englert Corrêa Meyer
Coordenador do Programa de Pós-graduação em Design da Unisinos
Os episódios climáticos extremos que assolaram o RS expressam a ambiguidade da força humana. A entrega voluntária altruísta, corajosa e irrefreável de tantos, antípoda do empenho humano em dilacerar o planeta e as formas de vida. Tal condição dupla indissociável, em que o humano é ao mesmo tempo esperança e infortúnio, é o traço característico do fim da modernidade e a culminação do antropoceno. Embora entremeadas, são forças de proporções inigualáveis. Não é preciso muito para perceber a dimensão indômita da crise climática, uma imensidão para a qual jamais haverá voluntariado suficiente. Tal desajuste deve estimular outro entendimento da nossa presença na natureza.
O tom conflitual, beligerante, que diz estarmos em um “cenário de guerra”, que será necessário um “Plano Marshall”, revela a incompreensão radical da nossa relação com o planeta. Precisamos de outras analogias, pois não se pode ir a uma batalha em que você mesmo é o adversário.
No fervilhar da crise desponta dos precavidos o discurso por “futuros melhores”. Proliferam iniciativas de organizações falando em futuros mais eficientes, em tecnologias do futuro. Assinala-se um recurso de ressonância destinado a legitimar as escolhas atuais em função da domesticação da dimensão esperada do tempo. Acredita-se na estabilidade do recurso tecnológico atual para, a partir dele, imaginar-se as implicações decorrentes. Essa prática esquece, ou não parece ver, que falar em futuros é sempre acompanhado da ingenuidade de se concebê-lo diante dos valores do presente. Pensar o RS do futuro não é o bastante. Cabe ambicionar a virada substantiva das iniciativas que mantêm preservada a linguagem do lucro sobreposta a todas as outras. Se não há tal transformação, o futuro não será mais do que o prolongamento do presente. A mobilização decorrente da crise não deve conduzir sempre a um otimismo, portanto. Em alguns casos, o discurso da empatia é técnica sub-reptícia empregada a fins que se conhece bem.
O conceito de projeto mostra-se decisivo para permitir uma multiplicidade quanto à concepção de outros futuros. O projeto é um modo de estimular uma dialética entre atualidades e virtualidades, escapando à mera descrição ou hermenêutica. A virtualidade é aquilo que existe em um plano espaço-temporal, mas não se atualizou. Aquilo que poderia ter sido realizado, mas que se manteve desatualizado. Esse material virtual guarda infinidade irrestrita. São mundos, potenciais, intencionalidades… Uma multiplicidade como a que oferece o horizonte. A redução das emissões de carbono, a transição energética, o fim do uso de combustíveis fósseis, a interrupção do desmatamento, a consolidação da economia justa, a adoção de medidas substanciais quanto aos temas do clima e quanto ao fortalecimento das estruturas institucionais da ciência… São virtualidades que não se atualizam, mas que habitam o horizonte de possibilidades.
Quando se projeta, operam-se atualidades capazes de gerar condições de possibilidades para a multiplicidade de eventos no tempo. Projetar em tempos de crise é estimular condições para que certas virtualidades sejam tensionadas com o atualizado, o extrapolando. Assim, o projeto, nesse sentido, jamais é um prolongamento da referência presente. É, na sua vocação excedente, um estado de tensionamento estimulado pelo projetista ao confrontar o valor presente com a vastidão virtual. O futuro, nesses casos, refere tão somente a uma forma de mediação. Não é, portanto, um incognoscível a ser desvendado. O futuro não é um homogêneo do presente ou do passado; nem mesmo presente e passado são homogeneidades. Não há, portanto, causalidade possível ou desdobramento linear dos nossos valores presentes sendo levados ao futuro. Não se pode objetivar do ponto de vista projetual uma continuidade daquilo que está atualizado, pois o projeto é de aura transformativa.
Assim, falar em futuros requer assumir os riscos de se experimentar outras possibilidades. Tais possibilidades precisam impossibilitar a possibilidade corrente. Pois a possibilidade corrente impossibilita todas as demais, já que tem aspecto dominante, restritivo e inconciliável. Assim, um ajuste de superfície não é o bastante. Os futuros preferíveis para o RS dependem de movimentos projetuais corajosos e criativos, isto é, afeitos ao risco. Precisamos romper com a firme segurança do futuro que nos atrai indefectivelmente, pois já lhe conhecemos as cores da imundície e da destruição.