Dados do Censo de 2010 do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apontam que, no Rio Grande do Sul, 157 mil pessoas se consideravam praticantes de umbanda ou candomblé — os dados do Censo de 2022 relacionados a religião ainda não foram divulgados. O Estado fica à frente, inclusive, da Bahia com 47 mil, e do Rio de Janeiro com 141 mil.
Os locais que muitos praticantes da religião buscam para exercer a sua fé foram atingidos pela enchente de maio. Levantamento realizado pelo Conselho do Povo de Terreiro do Estado do Rio Grande do Sul (CPTERGS) aponta que aproximadamente 750 terreiros em todo o Estado foram afetados. O conselho estima que, ao todo, haja 65 mil centros de prática no Estado.
— Terreiro não é prioridade de pauta dos governos e lançamos essa pesquisa que está com uma adesão muito grande. Tivemos perdas materiais e espirituais — explicou o presidente do CPTERGS, Baba Diba de Iyemonja.
Recentemente, o Ministério da Igualdade Racial (MIR), por meio da diretoria de Políticas para Povos e Comunidades Tradicionais de Matriz Africana, entregou 102 cestas de alimentos para lideranças de terreiro de municípios atingidos. A iniciativa será estendida a mais 240 famílias, com 480 cestas de alimentos.
— Quando se fala em terreiro, falamos de comunidade. São famílias atingidas e precisamos ter um olhar mais amplo, nos reconhecer como comunidade tradicional — respondeu o presidente.
"Ter força para dar para meus filhos", afirma mãe Saionara
Mãe Saionara de Oxum está há 13 anos à frente do Terreiro Ilê Oxum Panda Ieie - Riche, situado no bairro Sarandi, em Porto Alegre. No local ela pratica a Nação, uma linhagem de religião afro-brasileira. O espaço está fechado desde o dia 3 de maio devido à elevação da água nas ruas ao redor.
No começo, Mãe Saionara não acreditava que a água chegaria, mas o filho dela alertou para o avanço da enchente. No salão do terreiro, ela perdeu itens materiais como cadeiras, bancos, atabaques, imagens, entre outros. Só conseguiu salvar os orixás, ou seja, a parte espiritual do terreiro.
— E ele (o filho) disse: "Se tu não levantar os orixás, eu vou levantar, porque essa água vai chegar aqui". E daí começou a levantar. E eu não acreditando que ia acontecer isso. Se eu não tivesse salvado, retirado eles dali, que é o que mais importa para gente, a nossa feitura, eu teria perdido — explicou.
A água no ambiente chegou na altura da cintura de Saionara. Além da perda dos itens, danos no piso e nas paredes ficaram como marcas da enchente. A residência dela fica no mesmo espaço, junto ao terreiro, e lá ela perdeu todos os itens da sua cozinha, sala e banheiro.
— Foi um choque enorme, ver tudo revirado. Era uma cena de guerra. Não consigo te explicar como é que aconteceu isso. Aquele cheiro horrível dava náuseas, ânsia de vômito, dor de cabeça. Grudou o lodo nas paredes.
Não há estimativa ainda das perdas materiais, tanto do salão do terreiro quanto da sua residência. O principal, na avaliação de Saionara, são as lembranças levadas embora.
— Nunca mais eu vou ter aquelas imagens. É uma história muito grande, é inestimável.
Agora, a mãe de santo trabalha para retomar a sua vida jogando búzios. Ela costumava atender três clientes por dia e, após a enchente, retomou o serviço há quatro dias, com o número reduzido e com uma mesa emprestada por uma filha de santo.
— Apesar de eu não ter parado ainda pra pensar no meu psicológico, como é que está, eu tenho que ter força para dar para os meus filhos, que também perderam. Para conseguir orientá-los — enfatizou.
"Meu barco vai andar de novo", diz pai de santo
A mesma situação foi vivida pelo Bàbá Julinho d'Òsalá Òbokún, zelador do Ilê Àsé Òbokún, no bairro Harmonia, em Canoas. O salão existe desde 1982, quando a sua mãe, hoje com 92 anos, era a mãe de santo do espaço. O local trabalha com três linhas afro-brasileiras: Umbanda, Nação e Quimbanda. O espaço foi totalmente coberto de água, chegando a 3m10cm.
— Quando eu vi a minha casa, da forma que eu saí daqui, eu só agradecia a Deus por estar vivo. Jamais pensei que eu sairia daqui de barco. É um desespero total, uma impotência muito grande — explicou.
O Babalorixá conseguiu retornar para a sua casa apenas no dia 6 de junho, depois de 23 dias fora. Quando chegou, se deparou com a perda de imagens, tambores, alguidar e outros itens. A ação de Julio também foi a mesma de Saionara, ou seja, salvar o que chamam de "sagrado", que são os orixás.
— Eu acredito em uma força maior, confio nessa espiritualidade que eu tenho, que me carrega, que me cuida, que cuida todos nós. Não é que isso vai passar, a questão é trabalho. Isso vem para nos ensinar — comentou.
Junto ao terreiro, mora ele e a sua mãe. Na casa da sua mãe, no térreo, todos os itens foram perdidos. Nos fundos funcionava um espaço cultural, com cursos de danças, de capoeira, apresentações e aulas. Também foram perdidos 776 livros. Cerca de 300 pessoas circulavam por semana pelo local, seja nas atrações, atendimentos ou nas giras. A água também deixou rachaduras nas paredes e danos no forro.
Alguns locais da residência ainda não foram acessados para a limpeza. A expectativa é de que em dois meses sejam retomados os atendimentos. A festa de Oxalá, que ocorre em 19 julho e normalmente recebe 600 pessoas no local, não poderá ser realizada.
— Eu acho que agora Oxalá está me dando essa força exatamente para isso, para que eu entenda como recomeçar e também uma forma de a gente se reconhecer. Eu espero que isso mude um pouco a mentalidade das pessoas.
O local também está servindo como ponto de doações de cestas básicas, água e kits de higiene para população de terreiro.
— Tenho fé que meu barco vai andar de novo — afirma o pai de santo.