As quatro novas "cidades" temporárias que serão erguidas nas próximas semanas para receber desabrigados da histórica enchente de maio de 2024 deverão trazer para o coração da Região Metropolitana a experiência acumulada no acolhimento a refugiados e no auxílio prestado em zonas de conflito mundo afora. Locais devem atender cerca de 7,5 mil pessoas em Porto Alegre, Canoas, Guaíba e São Leopoldo.
A montagem de espaços provisórios - chamados oficialmente de Centros Humanitários de Acolhimento - é uma das formas encontradas pelo governo do Estado e por prefeituras para substituir alojamentos improvisados, instalados em locais como ginásios e escolas, por espaços com melhor infraestrutura até a construção de moradias definitivas. Para isso, estudiosos vinculados à Organização das Nações Unidas (ONU) ajudam os técnicos locais a desenhar as novas instalações e a planejar como será a gestão dessas unidades com base em diretrizes desenvolvidas no atendimento a crises humanitárias em diferentes países.
A iniciativa também levanta controvérsias: especialistas em urbanismo, migrações e atendimento a refugiados sustentam que os abrigos coletivos precisam ser uma saída de curta duração e garantir o acesso de seus futuros moradores a saúde, educação e transporte para que cumpram sua finalidade de forma adequada e evitar que se convertam em guetos urbanos. O ministro de Apoio à Reconstrução do Estado, Paulo Pimenta, já se manifestou contrário à estratégia de grandes refúgios coletivos.
As estruturas deverão ter, pelo lado de fora, aparência similar à dos grandes hospitais de campanha montados durante a crise sanitária da covid-19, como aquele construído ao lado do Estádio Maracanã, no Rio de Janeiro, com ferragens de aço que sustentavam enormes lonas brancas. Por dentro, serão compartimentadas para dar forma a cabines destinadas a famílias com cama de casal e beliches para acomodar até seis pessoas, a alojamentos separados para homens ou mulheres com camas individuais, além de ambientes multiuso com TV e computador, para crianças, refeitório, cozinha e lavanderia coletivas, banheiros e chuveiros de uso comum, fraldário, lactário e anexo para animais de estimação.
Até a última quinta-feira (23), detalhes como os tipos de materiais a serem utilizados estavam sendo fechados para permitir a posterior assinatura de contrato com os fornecedores, mas a promessa é de que vão garantir "conforto térmico". Segundo o gabinete do vice-governador Gabriel Souza, que tem a responsabilidade de coordenar a iniciativa, as estruturas devem ter 6 mil ou 9 mil metros quadrados, ser capazes de receber até mil pessoas cada, e contar com "mobiliário essencial para a estadia das pessoas durante o abrigamento".
Camas e colchões serão fornecidos pela prestadora de serviços a ser contratada pelo Estado, e outros itens "poderão ser viabilizados por meio de doações ou, ainda, poderão ser itens de uso pessoal das pessoas abrigadas", segundo nota. As unidades podem ser reduzidas ou somadas umas às outras para atender a um número variável de desabrigados em cada município.
O desenho das instalações incorpora lições acumuladas pela Agência da ONU para Refugiados (Acnur), que deslocou cinco especialistas para a Capital e deverá seguir reforçando o time no front gaúcho.
— Uma das especialidades que oferecemos é o planejamento dos espaços emergenciais de acolhimento. Estamos com especialistas no Rio Grande do Sul que sabem onde precisam ficar as unidades habitacionais, as áreas comuns, quantos banheiros são necessários por número de pessoas, como deve ser feita a iluminação para não restarem cantos escuros. Também apoiamos a gestão dos abrigos por meio de regras de acolhimento, participação da comunidade, qual a rotina e a necessidade diária de água, alimentação e kits de higiene — exemplifica a chefe do escritório da Acnur em São Paulo, Maria Beatriz Nogueira.
A Organização Internacional para as Migrações (OIM), igualmente vinculada à ONU, também está "dialogando com o governo do Estado do RS para apoiá-lo no gerenciamento das estruturas de abrigamento que serão implementadas", de acordo com um comunicado enviado à GZH. Segundo Maria Beatriz, o objetivo é disseminar ao redor da Capital o conhecimento adquirido ao longo de décadas no atendimento a zonas conflagradas.
— Há padrões internacionais de estrutura e acolhimento elaborados com base em situações de emergência em que muitas pessoas perdem suas casas, seja por situação de conflito ou desastre. A diferença é que, aqui, temos governos comprometidos, tomando a liderança. Em outros lugares, isso não ocorre. Em zonas de conflito, há ainda uma demora maior para as pessoas voltarem para casa porque é preciso, primeiro, encerrar o conflito — compara a representante da Acnur.
A Acnur também está doando 208 "casas de emergência" - unidades de plástico e aço capazes de abrigar até cinco pessoas ou, como são modulares, se combinar pra uso como depósito ou outra necessidade. Até o meio da semana, o governo gaúcho estudava onde as instalaria. Canoas era um dos destinos prováveis.
Conforme o Piratini, a confirmação dos terrenos onde as grandes estruturas temporárias serão construídas dependem das prefeituras, embora tenham já indicações iniciais de Canoas, Porto Alegre e São Leopoldo (Guaíba ainda analisava possibilidades). Têm prioridade áreas planas, com facilidade de acesso a sistemas de água e esgoto, mas, conforme o gabinete do vice-governador, podem necessitar de investimentos adicionais como reforço na rede de energia elétrica. A intenção é que as novas "cidades" metropolitanas fiquem prontas entre 15 e 20 dias após a assinatura do contrato.
Mas até quando?
Se a estimativa do Piratini se confirmar, as chamadas cidades temporárias vão receber cerca de 10% do universo atual de 72 mil desabrigados em todo o Estado. Seria um último refúgio para quem não conseguir se alojar na casa de parentes, amigos, ou ser realocado por meio de outras políticas públicas como o Aluguel Social ou Solidário (programas que subsidiam acesso a moradias para pessoas em situação vulnerável). Apesar de ser uma medida emergencial, desperta preocupação em especialistas e divergências com o governo federal por conta de possíveis impactos sociais.
Copresidente da seção gaúcha do Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB-RS), a urbanista Clarice de Oliveira afirma que um dos principais riscos é que uma saída temporária se prolongue.
— Uma primeira preocupação é de que as medidas necessárias para a reconstrução das cidades se esqueçam no tempo, e as coisas não aconteçam depois que saírem das páginas dos jornais, como vimos recentemente no episódio (das remoções de famílias) da Avenida Tronco, em Porto Alegre. O ideal é que se pensasse em abrigos menores e mais pulverizados, próximos de onde as pessoas viviam — afirma Clarice, que também é professora do Programa de Pós-Graduação em Planejamento Urbano e Regional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).
É preciso evitar que ocorra um processo de guetificação, ou exclusão, pelo aspecto socioambiental. É preciso ter infraestrutura, ambiente seguro, acesso a estudo, saúde.
MARCELO ARIOLI HECK
Integrante do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Estado
Segundo o governo estadual, o contrato para montagem e manutenção das novas estruturas provisórias é de seis meses, renováveis por outros seis, mas a intenção é que as famílias sigam para moradias definitivas assim que possível. Até o momento, porém, desabrigados do Vale do Taquari nas enchentes do ano passado ainda aguardam residências viabilizadas pelo programa Minha Casa Minha Vida. Para o integrante do Conselho de Arquitetura e Urbanismo do Estado (CAU-RS) Marcelo Arioli Heck, além do risco da demora até uma solução definitiva, há o perigo da "guetificação" dos refúgios coletivos.
— Entendemos a necessidade desses "bairros" provisórios, que me parece um termo mais adequado do que cidades, pela questão da escala. Mas, além da preocupação de que esses locais se tornem permanentes, é preciso evitar que ocorra um processo de guetificação, ou exclusão, pelo aspecto socioambiental. É preciso ter infraestrutura, ambiente seguro, acesso a estudo, saúde — diz Heck.
Professor de Direito Internacional da Unicamp e pesquisador sobre migração e pobreza, Luís Renato Vedovato acrescenta que o ideal é que os abrigos resguardem, sempre que possível, relações sociais prévias:
— É fundamental preservar, além de direitos de saúde, segurança, educação e transporte, direitos sociais como manter a proximidade com antigos vizinhos ou parentes, para que um momento difícil não se torne ainda mais duro.
Em uma declaração recente, o ministro Paulo Pimenta demonstrou contrariedade em relação ao projeto do Piratini:
— Isso é maior do que a grande maioria das grandes cidades do Brasil (tamanho dos refúgios). Seriam onde a transição ocorreria (...). Esse é o grande debate, como o poder público oferece dignidade e condição para que as pessoas façam uma transição adequada até chegar o momento de elas voltarem a ter uma casa. E aí tem visões diferentes, concepções distintas — completou o ministro, que defende uma solução mais pulverizada.
O que diz a nota do governo do RS
"O Rio Grande Sul tem quase 73 mil pessoas em abrigos que não têm estrutura adequada para abrigá-las por longos períodos. Se nada for feito, elas poderão permanecer nesses abrigos até que suas moradias definitivas estejam prontas, o que demandaria mais tempo. A proposta das cidades temporárias busca oferecer uma estrutura com melhores condições, localizada em áreas com acesso a serviços públicos essenciais, como educação, saúde e transporte. Além disso, muitos dos abrigos atuais, apesar da solidariedade presente, não foram projetados para acomodar tantas pessoas de forma prolongada. São na verdade alojamentos provisórios. Em vários casos, faltam banheiros e chuveiros suficientes, cozinhas adequadas, espaços para as crianças brincarem e locais apropriados para abrigar animais de estimação. As cidades temporárias são planejadas para superar essas deficiências, proporcionando uma infraestrutura mais adequada e digna para as famílias afetadas. A intenção é oferecer uma solução temporária mais humana e estruturada, até que as moradias definitivas possam ser entregues, garantindo assim que todos possam viver com qualidade e acesso aos serviços necessários. Por fim, os abrigos atuais precisarão retomar suas atividades fins em breve, como o caso de escolas, universidades, ginásios, clubes, CTGs e outros locais que de forma voluntária e muito solidária cederam seus espaços para abrigar os gaúchos no momento mais emergencial".