Por Rodrigo Trespach
Historiador e escritor, autor do livro “1824” (Citadel, 2023)
Mais da metade dos imigrantes germânicos que chegaram ao Rio Grande do Sul durante o Primeiro Reinado (1822-1831) eram “evangélicos” – o termo usado na época para distinguir quem professava a fé protestante dos fiéis católicos, não tendo o sentido moderno, associado aos neopentecostais. Eram luteranos e calvinistas ou reformados. Tinham origem na Reforma Protestante, desencadeada na Alemanha em 1517.
Como colônia portuguesa, o Brasil mantivera pouco contato com cristãos não católicos, salvo o estabelecimento de franceses no Rio de Janeiro e no Maranhão e durante a ocupação holandesa do Nordeste, nos séculos 16 e 17. Expulsos pela força das armas ou perseguidos pela Inquisição, não havia protestantes no Brasil, com exceção da pequena comunidade anglicana que passou a se reunir na capital nacional durante a presença de dom João VI no país.
O catolicismo continuou sendo a religião oficial após a Independência do Brasil, conforme determinava a Constituição outorgada por Dom Pedro I em 1824. As demais correntes eram toleradas, mas em culto doméstico, sem que fosse possível identificar os templos – algo que só mudaria com o fim do Império. Foi nesse contexto adverso que os imigrantes lançaram as bases do protestantismo brasileiro.
O primeiro pastor a chegar ao país, Friedrich Oswald Sauerbronn, se estabeleceu em Nova Friburgo (RJ), em maio de 1824. No Rio Grande do Sul, a comunidade luterana passou a ser atendida por Johann Georg Ehlers, que chegou a São Leopoldo em novembro do mesmo ano.
Aos 45 anos, viúvo e com três filhos menores, Ehlers nascera em Lüdersen, próximo de Hannover. Atuava como professor de uma escola particular quando foi ordenado às vésperas de sua partida para o Brasil. Ehlers registrou o primeiro batizado da nova colônia ainda a bordo do transatlântico Germania, em 1º de junho de 1824. A anotação no livro de batismos de São Leopoldo é o primeiro registro de uma comunidade protestante permanente no Brasil – o pastor Sauerbronn faria o primeiro apontamento de batismo em Nova Friburgo cinco dias depois. Ehlers não poupou detalhes sobre o batizado de Friedrich Germanicus, filho dos imigrantes Daniel Bendixen e Maria Rosina Kayser: o menino havia nascido em “18 de maio, às 10h30min, junto a Glückstadt, sobre o Rio Elba” e o batismo fora realizado no “Mar do Norte, a 54º 13’ de latitude e 5º 16’ de longitude de Greenwich”. No dia seguinte, o pastor celebrou quatro casamentos.
Pouco mais de um mês após chegar a São Leopoldo, Ehlers oficiou o primeiro culto luterano no Rio Grande do Sul, celebrado no Natal de 1824, no roseiral do inspetor José Tomás de Lima. Mesmo tendo se envolvido em desentendimentos com os colonos, ele permaneceria como pastor por mais de 20 anos, até deixar a colônia, em 1845. Transferiu-se para Rio de Janeiro, onde passou a dar aulas e se converteu ao catolicismo, morrendo cinco anos depois.
O segundo pastor a chegar ao Rio Grande do Sul foi Carl Leopold Voges. Pouco se sabe sobre sua vida antes da imigração. A cidade onde ele afirma ter nascido não existe e nunca foram encontradas informações sobre sua ordenação – seus documentos foram perdidos no naufrágio do Flor de Porto Alegre, embarcação que o trouxe ao RS. Voges chegou em São Leopoldo em fevereiro de 1825, tornando-se pastor adjunto de Ehlers.
Em novembro de 1826, ainda solteiro, Voges acompanhou a caravana de 422 colonos que foi enviada para o litoral norte gaúcho, onde seria criado o segundo assentamento com alemães. Com a colônia dividida por credo, Voges se ocuparia dos protestantes, estabelecidos às margens do Rio Três Forquilhas em 1827 – os católicos foram instalados entre as lagoas do Morro do Forno e do Jacaré (atuais municípios de Dom Pedro de Alcântara e Morrinhos do Sul), em 1828. O pastor recebeu duas colônias de terras, onde construiu a igreja, a escola comunitária, sua residência e uma casa de comércio. Casou e teve cinco filhos. Viveu ali até falecer, em 1893, após 67 anos de atividade religiosa e comercial.
O último dos quatro pastores contratados pelo major Schaeffer – o agente da imigração brasileira na Europa – foi Friedrich Christian Klingelhöfer, que desembarcou em Porto Alegre em 1826. Natural de Battenberg (Hesse), foi um dos poucos imigrantes a chegar ao Brasil em boa situação financeira. Além de pagar a própria passagem e as de sua esposa e quatro filhos, comprou quatro escravizados no RJ. Tinha dinheiro e estava disposto a criar um grande estabelecimento agrícola, mas nunca ganhou a sesmaria prometida. Recebeu o mesmo que os demais colonos. Dedicou seu tempo à lavoura e ao atendimento dos protestantes do lado direito do Rio dos Sinos. Em Campo Bom, construiu a primeira igreja luterana do sul do Brasil, em 1827. Anos mais tarde, se envolveu com política, lutando ao lado dos farroupilhas. Durante um combate com tropas imperiais, Klingelhöfer foi morto e degolado nas proximidades de Triunfo, em 1838. Passou a história como “o pastor farrapo”.
Nas décadas seguintes, as comunidades protestantes continuaram sendo atendidas por pastores alemães ou por pregadores leigos, sem formação. Apenas na segunda metade do século 19, os luteranos conseguiram criar uma instituição capaz de reunir as comunidades espalhadas pelo estado sob a mesma direção. Os pastores, no entanto, vinham da Alemanha ou dos EUA. A formação pastoral no Brasil e a organização das principais instituições luteranas no país – a Igreja Evangélica de Confissão Luterana no Brasil (IECLB) e a Igreja Evangélica Luterana do Brasil (IELB) – seria consolidada apenas após a Segunda Guerra Mundial.