Por Paulo Rezzutti
Autor, entre outros livros, da coleção “A História Não Contada” (ed. LeYa)
Se hoje é difícil imaginar um país que não garanta os direitos fundamentais à sua população, tal realidade, no início do século 19, era um luxo para poucos países e uma afronta aos governantes que haviam derrotado Napoleão Bonaparte. O Congresso de Viena de 1815 e a Santa Aliança queriam acabar com a ideia de que todos podiam ser iguais.
Na prática, as ideias de liberdade e igualdade difundidas durante a Revolução Francesa deveriam ser engavetadas, e a França, tal qual um doente contagioso, deveria ser posta em isolamento. Mas os vencedores se esqueceram de combinar isso com as ideias, que não conhecem prisões e nem fronteiras.
Os ventos do liberalismo e do constitucionalismo sopraram de Leste para Oeste na fronteira entre Espanha e Portugal. A revolta que levou ao estabelecimento da Constituição espanhola de 1820 influenciou o surgimento da Revolução do Porto, em agosto do mesmo ano. Além de exigirem o retorno do rei d. João VI, que se encontrava no Brasil com o aparato estatal desde 1808, criaram uma junta governativa e planejaram uma constituinte que deveria se reunir em Lisboa.
No Brasil, a notícia chegou em outubro, e, a partir de janeiro de 1821, diversas províncias brasileiras se rebelaram e declararam apoio às Cortes de Lisboa. Enquanto d. João retornava para lá, como ordenado pelos novos donos do poder, seu filho d. Pedro ficou no Brasil como Príncipe Regente. Em sua primeira proclamação, em 27 de abril de 1821, ele declarou que era sua intenção de zelar pela “felicidade do Brasil” até que a constituição estivesse pronta e apressou-se a emitir decretos que antecipavam certas liberdades individuais, como o direito de propriedade e o de não ser preso arbitrariamente.
Após o dia do Fico, quando d. Pedro decidiu permanecer no Brasil, o senado da Câmara do Rio de Janeiro propôs que fosse convocada uma assembleia constituinte no Brasil, independente da portuguesa. D. Pedro lavrou um decreto convocando a assembleia, que deveria se reunir em 1823.
A Assembleia Constituinte se reuniu em 3 de maio de 1823, após a proclamação Independência, enquanto ainda havia disputa com os portugueses. No discurso de posse, d. Pedro declarou que a Constituição deveria merecer sua aceitação e pediu aos deputados que criassem uma divisão de poderes como idealizada pelos iluministas, “em que os três poderes sejam bem divididos de forma que não possam arrogar direitos que lhe não compitam, mas que sejam de tal modo organizados e harmonizados, que se lhes torne impossível, ainda pelo decurso de tempo, fazerem-se inimigos”.
Esse discurso causou o primeiro de muitos conflitos entre o imperador e a assembleia. Alguns deputados afirmariam que a Constituição não deveria ser digna do imperador, mas sim do povo brasileiro. Dado que o direito a votar e ser votado dependia de se ter certa renda, os deputados constituintes eram todos membros das classes mais altas e, obviamente, as pautas dessa assembleia eram um arrazoado de direitos e privilégios para elas. O fim da escravidão nem sequer entrou na pauta, sendo a única voz dissonante a de José Bonifácio.
Logo os demagogos tomaram gosto em ouvir a própria voz, e as ideias mais díspares surgiram. Chegou-se até a propor que os direitos dos portugueses deveriam ser cassados, mesmo os que tinham ficado ao lado do Brasil, como um dos próceres da Independência, Clemente Pereira. Isso ajudou a incendiar a imprensa e a sociedade. Em novembro de 1823, diversos incidentes na corte levaram os irmãos Andrada a propor a expulsão dos portugueses do Exército brasileiro e sua deportação do país. Nessa época, somente 24 dos 272 artigos do projeto proposto em setembro haviam sido discutidos e, pelo ritmo dos trabalhos, ainda demoraria um ano para a Constituição ser aprovada. Os sentimentos antilusitanos transformaram a Assembleia Constituinte num grande paiol de pólvora, e tudo foi para o ar em 11 para 12 de novembro de 1823, na chamada “Noite da Agonia”, quando a Assembleia Constituinte foi, a mando de d. Pedro, fechada pelo Exército.
No decreto da dissolução, o imperador afirmou que daria uma Constituição para o Brasil, duas vezes mais liberal do que a proposta. Em 13 de novembro de 1823, ele convocou um Conselho de Estado para criar um novo projeto, aproveitando o que já havia sido discutido. O texto final da Constituição foi enviado para todas às câmaras das vilas e cidades brasileiras e mais da metade deu aval à nova lei magna, que foi outorgada em 25 de março de 1824.
Essa Constituição continua os princípios mais modernos do direito público da época, além de um quarto poder, o Poder Moderador, idealizado pelo filósofo e político suíço Benjamin Constant de Rebecque. Esse poder dava ao imperador o direito de dissolver a Câmara e convocar novas eleições, além de, por exemplo, suspender magistrados nos casos previstos, perdoar e moderar penas e conceder anistia. Outras prerrogativas, como prorrogar ou adiar a abertura da Assembleia, já faziam parte das atribuições imperiais pelo projeto da Constituição. O Poder Moderador foi a fórmula jurídica encontrada para regular os demais poderes, se fosse o caso, por meio do direito de vetar leis e dissolver a Assembleia.
Comparando a proposta da Constituinte de 1823 e a Constituição de 1824, uma coisa salta à vista: se por um lado a outorgada pelo imperador concentrava mais poderes em sua mão, por outro era mais liberal em diversos pontos. Por exemplo, embora o catolicismo fosse reconhecido como religião oficial, havia liberdade de culto, e, quanto aos direitos invioláveis das pessoas e propriedades, a Constituição listava 34 pontos, enquanto o projeto de 1823, somente seis. Como um aceno aos latifundiários, a mão de obra escravizada não foi banida, porém os negros libertos tinham plena cidadania, o que havia gerado grande discussão no projeto de 1823.