Por Carmen Hein de Campos
Conselheira-diretora da ONG Themis – Gênero, Justiça e Direitos Humanos. Docente visitante na UFPel
A honra masculina e a desonra feminina são valores relacionais de longa duração. A desonra feminina vincula-se ao comportamento sexual, tanto que o estupro era um crime cometido contra a segurança da honra, segundo o código penal do Império (1830), o que poderia ser corrigido com o casamento da vítima com o estuprador.
O Código Civil de 1916 permitia a anulação do casamento por erro essencial à pessoa, sendo o erro referente à identidade do cônjuge, sua honra e boa fama, ou quando o marido ignorasse o defloramento da mulher. Os primeiros ainda persistem no atual Código Civil (de 2002) como possibilidades para anulação do casamento. E, embora matar em legítima defesa da honra não fosse autorizado pelos códigos penais brasileiros, o fato é que a defesa da honra masculina é um valor presente no sistema de Justiça.
A tese da legítima defesa da honra para absolver homicidas foi inaugurada na década de 1970, período em que os movimentos feministas começaram a se organizar no país e a denunciar as violências sexual, feminicida e doméstica contra as mulheres. São especialmente os assassinatos de mulheres brancas, de classes média e alta e a absolvição judicial ao final dos anos 1970 e início dos anos 1980 que fazem com que haja visibilidade e legitimidade, na mídia e na opinião pública, das denúncias dos movimentos feministas.
O assassinato de Ângela Diniz, uma mulher branca, de classe média alta, cometido pelo ex-companheiro, em 1976, com o uso da tese da “legítima defesa da honra” pela defesa e a pena de dois anos, mobilizou feministas em todo o país. Elas criaram o slogan “quem ama não mata”. A ação contribuiu para que, em novo julgamento, ele fosse condenado à pena de 15 anos de prisão. Desde então, os movimentos feministas sustentam que a tese é perversa, machista e incompatível com a Constituição Federal de 1988 e os tratados internacionais de direitos humanos ratificados pelo país.
A perversa aceitação social e jurídica da legítima defesa da honra é também estudada desde a década de 1980. Em 1983, a antropologa Mariza Corrêa publicou o livro Morte em Família, no qual analisou homicídios tentados e consumados em relações de conjugalidade nas décadas de 1950 e 1960 na cidade de Campinas (SP). A fidelidade aparece como um dever para as mulheres, e sua ausência, um direito, para os maridos que se adequavam ao papel tradicional de provedores do lar, de matar as suas esposas infiéis, utilizando a tese da legítima defesa da honra. Mariza revelou como as relações de gênero, classe e poder estavam imbricadas no argumento da legítima defesa da honra e, ainda, que os julgamentos dos “crimes da paixão” obedeciam a uma lógica jurídica e aos valores dominantes que definiam o papel de homens e mulheres na sociedade.
À conclusão semelhante chegaram Danielle Ardaillon e Guita Grin Debert, em pesquisa realizada em processos judiciais de crimes de estupro, espancamento e homicídios e publicada em 1987, pelo Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, no livro Quando a Vítima É Mulher. Na análise dos discursos de defesa e acusação, elas demonstram que, nos julgamentos, “não se julga o crime isolado, mas os indivíduos envolvidos”, e busca-se “pintar um quadro, um retrato, um perfil dos envolvidos, cujos contornos já estão dados de antemão”.
Nos homicídios, o perfil do homem é o do trabalhador, provedor do lar; já o da mulher é o de um indivíduo que se afastava do papel de boa mãe, esposa e submissa aos padrões adequados ao feminino. Desde então, inúmeros estudos demonstram a persistência de estereótipos de gênero e raça no sistema de Justiça.
Por isso, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF), embora seja muito importante, vem com, no mínimo, 40 anos de atraso. Ao declarar inconstitucional a tese, o STF põe fim à sua utilização, tanto por parte da defesa, da acusação, da autoridade policial, quanto do juízo. Não pode mais ser arguida, de modo direto ou indireto, em qualquer momento (pré-processual ou processual penal) ou durante o julgamento perante o tribunal do júri, porque viola os princípios da proteção à vida, da dignidade e da igualdade de gênero.
Extirpar os estereótipos de gênero e raça presentes no sistema de justiça é fazer justiça às mulheres, vítimas cotidianas do feminicídio e da misoginia.