Nem os mortos de Caraá foram poupados pela fúria impiedosa da natureza. Conhecido como "berço das águas" por abrigar quatro arroios e dois rios, o município de 8 mil habitantes no Litoral Norte teve o cemitério Pedro Freiberger dilacerado pelo ciclone extratropical que varreu a faixa nordeste do Rio Grande do Sul a partir da noite de quinta-feira (15)
O campo santo, até então um local bucólico a cerca de sete quilômetros do centro, está em ruínas. Os túmulos foram violados pela correnteza que transbordou do Rio dos Sinos. As lápides estão quebradas. As capelas, caídas, e os caixões, mergulhados numa água barrenta.
Em meio ao lamaçal que deixou os corredores intransitáveis, o vento e a chuva espalharam pesados blocos de mármore e frágeis flores de plástico. Sobre o que restou dos túmulos, há galhos de árvores, pedaços de ferro, fotografias encharcadas e restos mortais.
Isolada pelas barreiras na estrada desde sexta-feira, a aposentada Luiza Ramos da Silveira, 64 anos, só conseguiu sair de casa na tarde deste domingo (18). A primeira parada foi no cemitério, para saber se estava tudo bem no descanso final dos pais, do marido e do filho.
— Que coisa horrível toda essa destruição. No túmulo dos meus pais, a capela caiu, se desmanchou. No meu marido e meu filho, está cheio de barro. Não tem nada mais triste que isso — desabafou.
Morando diante do cemitério, o motorista Rodrigo Meller, 43 anos, testemunhou a inundação. Segundo ele, a enchente no local superou três metros de altura. Quando o Rio dos Sinos começou a subir, por volta das 19h de sexta, ele correu para tirar do pátio os veículos da empresa de transporte da família. Mal conseguiu levar um ônibus, um microônibus e uma van até um terreno elevado antes de a água tomar conta da rua.
— Eu moro na beira do rio, mas a água não veio só daqui de trás. Veio lá de cima. Os arroios todos transbordaram, levando tudo pela frente — lembra Meller, enquanto limpava móveis e tentara tirar a lama acumulada dentro de casa.
O cenário é semelhante em toda a Estrada Leopoldo Fofonka, que liga o Morro da Borussia, em Osório, até o centro de Caraá. Nos trechos despovoados, praticamente não há vegetação em pé. Do pasto mais ralo a árvores de três, quatro metros, tudo foi deitado pela enxurrada que invadiu os campos.
Quando surgem os casarios no horizonte, os móveis estão na rua, as cercas viraram varais e os moradores tentam aproveitar as horas de sol para limpar, secar ou consertar o que um dia foi mobília e vestuário.
O motorista de aplicativo Anderson Geronimo nem sequer teve essa chance. A casa dele foi totalmente destruída pelo ciclone. Nenhuma parede restou em pé. Portas, janelas e telhas foram jogadas a 500 metros do terreno. O contrapiso foi arrancado, deixando as fundações à mostra. Num canto do banheiro, o vaso sanitário foi a única coisa que ficou presa ao chão.
Geronimo e a mulher estavam na casa de parentes, em Santo Antônio da Patrulha, quando o tempo começou a virar. Por volta das 19h, ele foi até a residência ver se estava tudo bem e retornou para os familiares. Às 21h, telefonou para um vizinho pedindo que desligasse a energia elétrica. A resposta foi desoladora: não dava mais tempo. Estava tudo embaixo d'água.