Com um voto favorável à manutenção do júri que condenou os quatro réus pelo incêndio da boate Kiss, a maior tragédia já registrada no Rio Grande do Sul, ocorrida em janeiro de 2013, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) suspendeu, nesta terça-feira (13), a análise do recurso do Ministério Público contra a anulação do julgamento por parte do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul (TJ-RS). A interrupção ocorreu após dois pedidos de vista.
O adiamento foi solicitado pelos ministros Antonio Saldanha Palheiro e Sebastião Reis, logo após o voto do relator do caso, ministro Rogério Schietti, que se posicionou favorável à derrubada da anulação do júri de dezembro de 2021. Ou seja, ele votou pela manutenção da condenação dos quatro réus no caso.
Os acusados — os empresários Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann e os integrantes da banda Gurizada Fandangueira Marcelo de Jesus e Luciano Bonilha — foram condenados, em dezembro de 2021, a penas que variam de 18 a 22 anos de reclusão, por homicídio qualificado de 242 pessoas e tentativa de homicídio contra outras 636, que resultaram feridas ou com saúde abalada. Mas, em agosto do ano passado, atendendo a pedido dos defensores dos réus, o TJ-RS anulou o julgamento, quando desembargadores apontaram uma série de irregularidades formais anteriores ao júri:
- três sorteios para quem seriam os jurados (e não apenas um, como é o usual)
- ocorrência de uma reunião reservada dos jurados com o magistrado que julgaria o caso (sem a presença de defensores dos réus)
- formulação supostamente equivocada de perguntas a que os jurados teriam de responder
- acesso por parte do Ministério Público ao banco de dados Consultas Integradas, o que permitiu que a acusação impugnasse dezenas de possíveis jurados que já tinham visitado parentes ou amigos no sistema prisional (sendo que o banco de dados não é acessado pela defesa dos réus).
Inconformado, o Ministério Público (MP) recorreu ao STJ, pedindo a derrubada da decisão emitida pela Corte gaúcha e mantendo a condenação dos réus.
O relator do caso no STJ, ministro Rogério Schietti Cruz, demonstrou solidariedade aos familiares de vítimas do incêndio e admitiu o recurso do Ministério Público. Disse que o processo é complexo, com mais de 68 mil páginas, e ressaltou que o caso não pode ser examinado com excesso de formalismo, devido ao gigantismo do assunto.
Ele não verificou nulidade na escolha dos jurados. Sobre o acesso ao sistema criminal Consultas Integradas, Schietti também descartou prejuízo aos advogados. Sobre a reunião de jurados com o juiz do caso Kiss, ele considerou a questão superada, porque a reclamação a respeito deveria ter ocorrido próxima ao fato, não posteriormente. Por último, descartou que o réu Mauro Hoffmann tenha sido prejudicado nos quesitos julgados pelos jurados. Finalizou com um elogio ao magistrado que presidiu o júri:
— Parece-me que o juiz Orlando Faccini Neto foi zeloso. Para declarar nulidade de um processo judicial, é necessário comprovar prejuízo ao réu. Com argumentos plausíveis e não apenas retóricos. A forma não é fim em si mesma. Ela está a serviço do correto desenvolvimento do caso. Não identifiquei mácula alguma ao resultado do julgamento.
Início com duas horas de atraso
Foi o ápice da sessão, aberta às 13h12min pela ministra Laurita Vaz, presidente do colegiado, a votação referente ao caso Kiss teve de ser adiada por mais de duas horas, porque uma pane no avião que levava um dos ministros, Antônio Saldanha Palheiro, a Brasília, impediu que o magistrado chegasse na hora marcada, provocando atraso na reunião da 6ª Turma do STJ. A sessão tratou de outros assuntos e chegou a ser suspensa às 15h11min, porque o ministro ainda não estava presente.
A demora impacientou os 20 grupos de familiares e amigos de vítimas da Kiss, que compareceram pessoalmente à sessão de julgamento. Eles desembarcaram na capital federal graças a recursos obtidos numa vaquinha on line. Esses manifestantes mostraram, no STJ, fotos dos mortos na tragédia, numa forma de pressão para que fosse mantida a condenação dos acusados.
Às 15h36min finalmente a apreciação do recurso do MP começou. A primeira a falar foi a magistrada Laurita Vaz (presidente da 6ª Turma), que ressaltou a importância de tratar "da maior tragédia da história do Rio Grande do Sul". A seguir foi dada a palavra à procuradora de Justiça Irene Soares Quadros, do Rio Grande do Sul.
Argumentos de MP e defesas
Em sustentação oral, Irene defendeu que o resultado do júri que condenou os quatro réus fosse mantido. Disse que as supostas irregularidades que levaram à anulação do julgamento de 2021 não poderiam resultar em anulação do júri, na medida em que não prejudicaram a defesa dos acusados.
— Qual foi o prejuízo aos réus? Nenhum. Já os familiares estão há 10 anos esperando por Justiça. Peço que o tribunal determine a imediata prisão dos réus — solicitou Irene, ressaltando ainda que a defesa dos acusados silenciou a respeito das supostas nulidades durante o júri e somente suscitou a questão após os acusados serem condenados.
Ainda pela acusação, falou a subprocuradora-geral da República, Raquel Dodge. Ela também argumentou que a defesa dos acusados somente suscitou a questão das nulidades após os acusados serem condenados:
— Os réus foram condenados pelo Tribunal do Júri, não podemos esquecer. As nulidades alegadas são relativas.
A seguir, foram para o plenário os defensores dos quatro réus: Jean Severo (advogado de Luciano Bonilha, integrante da banda que tocava na hora do incêndio), Bruno Seligmann de Menezes (advogado de Mauro Hoffmann, um dos sócios da Kiss), Jader Marques (advogado de Elissandro Spohr, outro sócio da Kiss) e Tatiana Borsa (advogada de outro integrante da banda, Marcelo de Jesus).
Eles defenderam anulação do júri, com base em irregularidades formais ocorridas antes do julgamento. Sobretudo a ocorrência de uma reunião reservada dos jurados com o juiz do caso (sem a presença de defensores dos réus) e também o acesso por parte do Ministério Público (MP) ao banco de dados criminais Consultas Integradas, o que permitiu que a acusação impugnasse possíveis jurados que já tinham visitado parentes ou amigos no sistema prisional (sendo que o banco de dados não é acessado pela defesa dos réus).
— Um cardápio repleto de nulidades. Eu não tinha informações de segurança sobre os jurados, como tinha o Ministério Público — resumiu Jean Severo.
Jader Marques acrescentou: "Se o governo é infrator da lei, perde a legitimidade", referindo-se ao Judiciário.
O advogado Bruno Seligmann citou frase histórica do mundo jurídico: "A Justiça não deve apenas ser feita, mas parecer que foi feita". E assegurou que isso não aconteceu no júri da Kiss.
Tatiana Borsa, a última defensora de réu a falar, mencionou como principal motivo de nulidade do júri "a reunião secreta do juiz com os jurados, sem transparência e lealdade com os defensores dos réus".
O ministro-relator do caso, Rogério Schietti Cruz, mostrou-se favorável aos argumentos do Ministério Público. Mas a votação foi interrompida. O desejo dos juízes é de retomar o assunto em até duas semanas, antes do recesso.
Familiares inconformados
O adiamento foi criticado por familiares de vítimas.
— Foi muito decepcionante. É uma tristeza sem fim para nós, a falta de capacidade de conseguir viver o nosso luto em paz. É mais tempo para aguardar uma decisão, tempo desnecessário. Só espero que seja breve e que possamos fazer justiça aos nossos filhos, que eles não tenham ido em vão — concluiu Fátima Carvalho, mãe de um rapaz morto na boate.