Sem perspectivas concretas para o recebimento de recursos do governo federal, prefeituras de diferentes regiões do Rio Grande do Sul têm decidido bancar a conclusão de escolas, creches e quadras esportivas com dinheiro do próprio município. É o que se verifica em cidades como Canoas, Gravataí, Guaíba, Porto Alegre e Rio Grande, por exemplo. Mesmo assim, dezenas de obras permanecem paradas no Estado, e é certo que uma parte delas não sairá mais do papel.
Conforme levantamento da Confederação Nacional dos Municípios (CNM), há pelo menos cem obras de educação paralisadas ou inacabadas no Rio Grande do Sul. As edificações estão espalhadas por 65 municípios gaúchos, e os motivos que causaram as paralisações são, na maioria dos casos, a falta de verbas do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) e a falência das empresas que haviam vencido a licitação.
As cem obras enumeradas pela CNM constam no Sistema Integrado de Monitoramento Execução e Controle (Simec), plataforma em que os municípios informam ao governo federal como está o andamento das construções. Os números servem como parâmetro, mas não podem ser levados ao pé da letra, pois, em alguns casos, há defasagem entre as informações prestadas pelas prefeituras e a realidade concreta. Além disso, o sistema é constantemente atualizado. Por isso, nem sempre os dados disponibilizados pela CNM e pelas prefeituras coincidem.
As obras listadas pela confederação são referentes ao período de 2007 a 2022, boa parte delas relacionadas ao Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil (ProInfância). Passados tantos anos desde o início dos trabalhos, ninguém sabe ao certo quantas escolas anda têm condições de ser efetivamente concluídas.
— Não dá para chutar (quando obras podem ser retomadas), teríamos de fazer um levantamento. Se o governo federal tivesse interesse em fazer um mutirão, em 15 dias teríamos um mapa por prédio — provoca o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski, para quem a "omissão dos governos que passaram" é a principal causa das obras paradas.
O cenário de obras paradas e desperdício de dinheiro público se torna ainda mais grave diante do desafio imposto aos municípios de zerar as filas na educação infantil. A obrigação já estava prevista na Constituição de 1988 e foi reafirmada em setembro de 2022, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) determinou que é dever do poder público ofertar vagas em creches. Prefeitos e entidades municipalistas alegam que falta dinheiro para cumprir a decisão do STF.
No último dia 13, em audiência na Câmara dos Deputados, o ministro da Educação, Camilo Santana, afirmou que o governo federal deverá lançar, nas próximas semanas, uma medida provisória para reiniciar as obras da educação nos Estados. O investimento total estimado para a retomada é de quase R$ 4 bilhões, de acordo com o FNDE.
— O presidente da República irá lançar, em breve, um programa de repactuação de todas as obras inacabadas e paralisadas nas escolas, por meio de medida provisória — sinalizou o ministro.
Guaíba concluiu duas obras e desistiu de duas
A situação em Guaíba, na Região Metropolitana, é um exemplo que ilustra o contexto de boa parte das cidades gaúchas, tanto pelo aspecto positivo quanto pelo negativo. Em 2013, o município deu início à construção de cinco escolas de educação infantil por meio do ProInfância. Em 2015, a administração local entregou a primeira, a Escola Municipal de Ensino Infantil (EMEI) Waina Maria Alencastro Barbosa, no bairro Jardim dos Lagos. A unidade recebeu repasse de R$ 1,49 milhão do governo federal e não demandou nenhum centavo do município. Foi a única que saiu conforme o plano original.
Quando assumiu o Executivo, em janeiro de 2021, o atual prefeito Marcelo Maranata (PDT) encontrou quatro obras de escolas infantis paralisadas. Sem sinal de que receberia novos recursos do governo federal, a prefeitura decidiu finalizar duas unidades, que atendem a quase 400 crianças nos bairros Cohab Santa Rita e Jardim dos Lagos. Pelas duas creches, o investimento do município foi de R$ 1,93 milhão, enquanto o FNDE contribuiu com R$ 2,69 milhões (valores não corrigidos pela inflação).
Outras duas obras, no entanto, foram tomadas pelo mato e não serão mais entregues. As unidades que seriam abertas nos bairros Noli e Pedras Brancas foram abandonadas pela empresa que venceu a licitação. Nos dois locais, ainda há esqueletos da estrutura que mistura fibra de vidro e gesso. A reportagem de GZH esteve nos locais e constatou a deterioração das estruturas, visivelmente degradadas pelas condições do tempo.
A prefeitura confirmou que os projetos não serão retomados por três fatores: danificação do material e da estrutura, falta de verba federal e a avaliação de que as obras não são mais necessárias nos pontos em que seriam construídas, pois já existem unidades próximas que absorvem a demanda por vagas.
— Muito do material abandonado estragou, enferrujou. Na condição em que está, é impossível tocar a obra. Além disso, naquelas regiões nós zeramos o déficit (de vagas em creches) — explica Maranata.
Enquanto as construções padecem sob a chuva e não há nenhuma perspectiva de retomada, a prefeitura de Guaíba espera uma orientação do FNDE a respeito do que fazer com os esqueletos. A dúvida é se os recursos gastos deverão ser devolvidos ao governo federal ou não.
Em Canoas, duas escolas sofreram com o abandono
A cerca de 40 quilômetros de distância dali, estão duas escolas infantis que também sofreram por anos com o abandono e a depredação. As EMEI Alcy Paulo de Oliveira (Cica), e Central Park, no bairro Mato Grande, em Canoas, foram iniciadas em 2013 e 2014, respectivamente, mas ficaram paralisadas após a falência da construtora.
As duas escolas foram retomadas com investimento de R$ 2,1 milhões do município, além dos R$ 3,1 milhões do governo federal. A Cica foi entregue em abril de 2021. Já a Central Park, que estava em pior estado de conservação, deve ser concluída no final de maio.
Por entender que não seria possível reaproveitar a estrutura original com fibra de vidro, o município decidiu finalizar as construções em alvenaria.
— Na Central Park, a realidade foi muito cruel. Ela foi muitas vezes canibalizada pela própria comunidade, por mais que se investisse em segurança. Para nós, é uma grande vitória — diz a secretária da Educação, Beth Colombo, que era vice-prefeita de Canoas à época do início das obras.
O cenário nas grandes cidades
Em março, reportagem de GZH mostrou que a prefeitura de Porto Alegre promete retomar neste ano a construção de cinco das sete creches paralisadas. A verba para o recomeço das obras também será dos cofres municipais e não mais do governo federal. O valor previsto é de R$ 32,3 milhões, a serem repassados entre 2023 e 2024. Todo o processo será supervisionado pela agência das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco).
As creches que devem ser concluídas são a Clara Nunes (bairro Lageado), Moradas da Hípica (bairro Hípica), Colinas da Baltazar (Rubem Berta), Raul Cauduro (Rubem Berta) e Jardim Leopoldina II (Jardim Leopoldina). Ficaram de fora as creches Jardim Urubatã (na Hípica, Zona Sul) e Ana Paula (na Restinga, Zona Sul).
Em Gravataí, na Região Metropolitana, sete obras que estavam paralisadas foram retomadas pela prefeitura. Cinco já foram entregues e duas têm previsão de conclusão ainda neste ano. Existem ainda quatro obras que estão totalmente paralisadas, sem previsão de reinício.
A situação no sul do RS
Em Pelotas, no sul do RS, sete escolas infantis estão paralisadas. Em quatro das sete obras, a prefeitura está elaborando novos processos licitatórios para finalizar as escolas. Em outras três, o município está avaliando a demanda de vagas e a viabilidade. Há ainda uma oitava construção prevista, uma quadra coberta com palco na Escola Municipal de Ensino Fundamental Santa Irene, que está paralisada porque a empresa abandonou a obra.
A prefeita Paula Mascarenhas (PSDB) avalia que o cenário é um exemplo concreto de ineficiência das políticas públicas centralizadas pela União. Paula considera que, ao invés de adotar um "único modelo arquitetônico para o Brasil inteiro", com "licitações gigantescas", o governo federal deveria ter delegado aos municípios autonomia e recursos para executar as escolas infantis de acordo com a realidade local.
— Se aos municípios fosse dada a autonomia e os recursos para fazer, as obras já estariam prontas há muito tempo. O governo federal tem sinalizado que quer priorizar as obras inacabadas e isso nos traz a expectativa de que venham os recursos necessários para tal. Porque faltam recursos próprios num cenário em que Brasília nos corta receitas e nos cria novas despesas a cada momento — desabafa Paula, que à época do início das obras era vice-prefeita de Pelotas.
Em Rio Grande, também no sul do RS, as três creches que estavam paradas desde 2020 foram retomadas com recursos do município. As creches Parque Marinha, Parque São Pedro e Povo Novo estão em andamento e devem ser entregues em julho deste ano.
Obra chegou a incendiar na Fronteira Oeste
Em Santana do Livramento, na Fronteira Oeste, havia cinco obras dependentes de verba federal. Uma creche chegou a ser incendiada em 2019, tornando inviável o aproveitamento da estrutura.
A secretária municipal da Educação, Elisangela Duarte, explica que o município será obrigado a devolver para o FNDE os recursos federais desperdiçados nas gestões anteriores. A prefeitura pretende devolver o dinheiro de forma parcelada. O valor total é estimado em R$ 3 milhões, além de correção pela inflação.
— É injusto e triste. Vamos ter de deixar de investir para fazer uma devolução. A cidade, a gestão e as crianças que estão na ponta acabam perdendo — resume a secretária.
Conforme Elisângela, a demanda por vagas na educação infantil gira em torno de 300 crianças, mas estima-se que o número seja menor, pois alguns pedidos são de pais de alunos que já estão matriculados e buscam por vaga em outra escola. Se as creches tivessem sido executadas e entregues, a fila seria próximo a zero.
CNM quer ressarcimento da União
Apesar dos exemplos de prefeituras gaúchas que decidiram assumir a conclusão de obras que deveriam ser feitas com dinheiro da União, o presidente da CNM, Paulo Ziulkoski, pondera que, de forma geral, esta não é a regra na maioria dos casos.
— Não é tão comum. É que o prefeito fica contra a parede. É toda a sociedade e a mídia cobrando dele, a senhora cobrando dele. A senhora não conhece o Estado e a União, ela bate ali (na prefeitura), e o prefeito pega dinheiro de outra área para terminar a obra — observa o presidente da CNM.
Ziulkoski afirma que a entidade municipalista tentará reaver, judicialmente, os recursos gastos pelas prefeituras nas obras da educação. Em nota, o FNDE informou que "os recursos próprios poderão ser utilizados para posterior ressarcimento mediante prévia autorização da autarquia".
Já em relação à nova administração federal, capitaneada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o presidente da CNM diz que espera uma repactuação e o inventário de todas as obras que estão paradas.
— O que eu espero do governo é que ele pague para os municípios. É dinheiro que faz falta. Teria que se fazer um inventário, fazer uma repactuação, mas a União não faz isso. E também o Tribunal de Contas da União e a Controladoria Geral da União, que deveriam ser os grandes fiscalizadores, mas estão totalmente omissos. Quase 60% das obras são creches, na maioria delas virou mato. O dinheiro já foi gasto e a sociedade paga.
O que diz o FNDE
Responsável por operacionalizar o envio dos recursos da União, o FNDE reconhece que deve aos municípios gaúchos R$ 61,7 milhões para a execução de obras da educação. O fundo afirma que já transferiu R$ 49,4 milhões para as prefeituras do Estado, sendo que o pacto inicial previa o envio de aproximadamente R$ 111,1 milhões.
FNDE estima ainda que existem 101 obras inacabadas ou paralisadas no Rio Grande do Sul. Os números são próximos aos divulgados pela CNM. Em todo o Brasil, são 2,6 mil obras inacabadas e 918 paralisadas, especialmente em creches e escolas.
As obras são consideradas inacabadas quando o termo de compromisso para o repasse do dinheiro já expirou. Esses casos dependem de uma repactuação entre as prefeituras e o FNDE. Já as obras paralisadas possuem o termo de compromisso vigente, mas foram interrompidas em razão de alguma pendência como, por exemplo, o abandono da empresa que venceu a licitação.
Leia a nota na íntegra:
Foram transferidos, para o Rio Grande do Sul, o total de R$ 49.383.802,92 para as obras que atualmente estão em situação de paralisadas ou em execução. Vale lembrar que os recursos não podem ser repassados para as inacabadas porque não possuem termo de compromisso vigente, não há legislação que permita o repasse neste momento. O valor pactuado era de R$ 111.071.037,23 para essas obras. Hoje, no Rio Grande do Sul, temos 101 obras inacabadas ou paralisadas.
O MEC e o FNDE têm realizado análises técnicas e envidado esforços junto aos órgãos envolvidos na gestão orçamentária e financeira para a continuidade dos pagamentos das obras existentes. Um levantamento identificou cerca de 2,6 mil obras inacabadas e 918 paralisadas, especialmente em creches e escolas, em 833 municípios de todas as Unidades Federativas.
Na última quarta-feira, 12 de abril, durante reunião com a Comissão da Educação na Câmara dos Deputados, o ministro da Educação adiantou que foi elaborada uma proposta de medida provisória para lançar um programa amplo de obras na educação. O intuito é a criação de um pacto nacional pela retomada das obras inacabadas e paralisadas nas escolas. O investimento total estimado para a retomada dessas obras da educação é de quase R$ 4 bilhões.