As botas do produtor rural Vinicius Ottoni, 44 anos, pisam no solo rachado da localidade do Rincão do Bugre, em Soledade, no limite com Espumoso e Mormaço, no norte do RS. O município, distante 220 quilômetros de Porto Alegre, convive com a pouca chuva desde novembro do ano passado. Os açudes e poços artesianos da região secaram, os grãos não vingaram, enquanto os animais vagam sem perspectiva de pasto verde.
Em algumas propriedades, as costelas salientes do gado são um triste retrato do cenário onde a seca mata. As fissuras no chão castigado se espalham em todas as direções.
— A perda na soja ultrapassa de longe os 80%. Não sei se vou conseguir colocar colheitadeira em alguns locais se não chover — afirma Ottoni, debaixo de sol intenso.
Ele possui uma propriedade de 300 hectares e sobrevive graças a três plantios por ano. Soja, milho e plantas forrageiras se intercalam pelas quatro estações. Há poucos animais na propriedade e o foco está concentrado na lavoura. Com as perdas, o dinheiro desapareceu, assim como a chuva.
— Tínhamos gordura de outras safras e investimos toda poupança nesta. Plantamos 100% da área por nossa conta. Não temos seguro e vamos perder tudo — desabafa Ottoni.
Nesta segunda-feira (13), o calor era abrasivo. A temperatura tem batido na casa dos 40 ºC nas últimas semanas. E tudo o que está plantado, sofre e definha. A escassez de alimento também assusta, mas há um fantasma maior: a falta de água.
— Estamos vindo de três anos de pouca chuva. E gastando a água do subsolo — diz Ottoni, salientando que em outras localidades falta água para saciar a sede dos produtores e de suas famílias.
Situação de emergência
Em decorrência dos efeitos da estiagem, a prefeitura decretou situação de emergência em 27 de janeiro. Entre as áreas mais castigadas estão Margem São Bento, Bugre, Pinhal e São Tomé. Conforme o secretário de Agricultura do município, Elmar Aguirre, a situação é dramática na região.
— No milho, a perda será de 70% a 80%. Estamos fazendo silagem, mas dá para contar quantos grãozinhos têm dentro das espigas. Em questão de três a quatro dias, passa de milho verde para seco — relata o titular da pasta, dizendo que se não chover haverá perda significativa também na soja.
Para o presidente do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Soledade e Mormaço, Alessandro de Miranda Gasparin, as perdas serão robustas nesta temporada, especialmente no que diz respeito ao milho.
— As perdas são bastante consideráveis, primeiramente na cultura do milho. Temos muitas propriedades produtoras de leite que perderam, além da pastagem, também o milho para a silagem — cita Gasparin, indicando que Linha Curuçu é uma das localidades mais afetadas.
O contexto é pouco alvissareiro para qualquer lado que se olhe da região. E o gado e o milho são, de fato, os mais prejudicados nessa balança de prejuízos sem fim.
— Acredito que o gado de leite, que perdeu pastagens e o milho, e a cultura do próprio milho são os mais afetados — projeta Gasparin.
O engenheiro agrônomo e assistente técnico regional da Emater/RS-Ascar, Josemar Parise, que acompanha 39 municípios da região, contextualiza o cenário:
— No entorno de Soledade, pela característica do solo mais raso, a situação das lavouras é muito mais severa. As folhas caem e estão com aspecto murcho em grandes áreas.
A estimativa da Emater é de que a produção de milho, prevista em 5,1 toneladas por hectare, será, em média, 30% menor do que o esperado. Em relação à soja, em que a projeção era de 3,2 toneladas de grãos por hectare, será 25% menor. Esses números não parecem tão acachapantes, em um primeiro momento, por envolverem os 39 municípios da região — alguns mais e outros menos afetados. E ainda podem variar para cima ou para baixo, de acordo com a constância da chuva nos próximos dias.
— A estiagem continua e a tendência, neste milho mais tardio, é de ampliar a perda. No milho colhido mais cedo, a produção já está definida e se iniciou a colheita — explica Parise.
GZH teve acesso a um laudo da Emater de perdas de milho em Soledade. Com data de 23 de janeiro, o material mostra perdas de 80% no milho e de 50% no milho de silagem, com prejuízo somado superior a mais de R$ 18,7 milhões.
Dos 1,5 mil hectares de área destinada para grãos, estima-se que 1 mil hectares tenham perdas de 80%. O valor da saca de milho foi considerado em R$ 87. Por sua vez, o preço da silagem foi de R$ 0,40 por quilo.
Laudo do Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Soledade e Mormaço apresenta também os números das perdas na produção de leite. São cerca de cem produtores em Soledade e aproximadamente 1,5 mil animais. Antes da estiagem, eram produzidos 30 mil litros por dia, agora são 22,5 mil litros diários. A perda estimada é de 25%. O prejuízo financeiro já está em R$ 756 mil.
Racionamento
A questão hídrica se agravou em relação ao ano passado, com rios, açudes e córregos estando demasiadamente baixos ou completamente secos. A região de Soledade vive racionamento de água.
— O Rio Espraiado, que abastece a região, é um filete de água. Estamos abastecendo quase todo o interior com caminhões-pipas. Os postos artesianos estão todos comprometidos, alguns não possuem mais água — lamenta o secretário de Agricultura do município, Elmar Aguirre.
O Rio São Bento, localizado no limite de Soledade com Espumoso, também está baixo. As águas desembocam no Jacuí. O normal seria ter pelo menos um metro de altura, mas está com menos de um palmo em alguns pontos.
A prefeitura mandou abrir com retroescavadeiras 48 bebedouros, entre novembro e dezembro do ano passado, e janeiro de 2023 nos grotões mais remotos. A medida evita que o gado morra de sede. Os gastos nessas ações já ultrapassaram os R$ 7,4 mil.
Conforme a Defesa Civil de Soledade, 207 poços artesianos tiveram algum tipo de manutenção entre dezembro do ano passado e janeiro. O valor das ações passaram dos R$ 60 mil. Foram, ainda, desde novembro até o fim de janeiro, 238 transportes de água por meio de caminhões-pipas, o que custou mais de R$ 12 mil. A comunidade de Macieira lidera o ranking. Foram 65 viagens de abastecimento, entre os últimos meses de novembro, dezembro e janeiro para as famílias dessa localidade.
— O caminhão tem capacidade para 10 mil litros de água e, dependendo da distância, transporta até sete cargas por dia — informa a coordenadora da Defesa Civil de Soledade, Aline Moraes.
O laudo social da prefeitura mostra o número de famílias afetadas pelas perdas nas plantações, na produção de leite e pela falta de água. E termina com um dado assustador — exatamente 30.065 pessoas foram castigadas pelos efeitos da estiagem, na soma das zonas rural e urbana. A esperança abandonou essas terras.