Orçadas em quase R$ 1 bilhão, 343 obras que contam com recurso federal estão paralisadas no Rio Grande do Sul de acordo com um levantamento do Tribunal de Contas da União (TCU).
A interrupção deixou espalhados viadutos que não se conectam a coisa alguma, escolas que se limitam a alicerces e postos de saúde à espera de reforma, entre outros monumentos ao desperdício. O relatório indica que 27% dos projetos previstos em solo gaúcho com dinheiro da União e eventuais contrapartidas de Estado e municípios estão parados – em nível nacional, a situação é ainda pior e atinge 38% das melhorias prometidas.
O tema da paralisação de obras públicas ganhou novo fôlego durante o processo de transição de poder no governo federal. A gestão recém-empossada divulgou uma cifra de 14 mil suspensões em todo o país. Mas os dados mais recentes disponibilizados pelo TCU, resultado de uma varredura em diferentes bancos de dados oficiais, apontam 8,6 mil obras sem conclusão em um universo de 22,5 mil contratos.
A descentralização do monitoramento promovida pelo governo federal a partir de 2019 dificulta a precisa avaliação das interrupções por motivos como falta de dinheiro, burocracia, falhas de projeto ou execução. O acórdão 1.228/2021 do TCU se debruçou sobre esse tema. O texto observa que “a incompletude identificada nos bancos de dados” se deve a decretos que descentralizaram “a gestão e governança dos empreendimentos do PAC (antigo Programa de Aceleração do Crescimento) para os diversos ministérios” e extinguiram o antigo sistema de monitoramento dessas iniciativas.
Por isso, o tribunal teve de vasculhar bancos de dados de diferentes órgãos, como Caixa, Ministério da Educação e Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit) para estimar o tamanho do descuido com o dinheiro dos impostos – mas a realidade pode ser ainda pior.
— Temos muita dificuldade de aperfeiçoar o controle social no Brasil. É um grande gargalo. Nem estou falando da população decidir onde a verba será aplicada, apenas de controle social. A rede de controle social que vinha se tentando construir foi desmantelada — avalia o professor de Administração Pública da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) Aragon Érico Dasso Júnior.
No Estado, as intervenções inacabadas já receberam R$ 195 milhões dos R$ 950 milhões previstos pela União. O problema mais frequente, segundo o levantamento atualizado até agosto do ano passado, é o abandono temporário ou definitivo de construções vinculadas à educação. Nessa lista de 140 contratos se encontram exemplos como o da escola de educação infantil Rincão da Madalena, na periferia de Gravataí. Onde deveria haver 220 crianças atendidas, há apenas alicerces, goleiras de futebol e mato onde pastava um cavalo na manhã de quinta-feira (5).
— Como não consegui vaga para o meu filho de um ano em escolinha pública, pago R$ 500 por mês em uma creche particular para ele ter onde ficar, e eu poder trabalhar — lamenta Makele Fontes, 26 anos, que mora diante do terreno baldio onde deveria haver um prédio de alvenaria.
A razão do abandono, segundo o relatório oficial, é “rescisão de contrato” com a empresa responsável. A prefeitura de Gravataí informou que teve de devolver a verba para a União em razão do atraso no cronograma e que pretende bancar por conta própria os R$ 12 milhões necessários para tirar a promessa do chão. O município acrescenta que o projeto está em fase de licitação.
Estruturas esportivas, de saneamento e de transporte também estão entre as mais afetadas pelas interrupções no Estado. Melhorias e duplicações de rodovias como a BR-290 e a BR-116 seguem com trechos sem atividade. A situação da 290 é mais complicada: conforme o mais recente mapa de gerenciamento do Dnit, com dados até o mês de outubro, a ampliação segue imóvel nos lotes 1, 2 e 3, que se estendem de Eldorado do Sul a Pantano Grande. Em pontos como Eldorado e Arroio dos Ratos, esqueletos de viadutos sem conexão com a pista abaixo, à espera da duplicação, servem apenas como fonte de sombra para o estacionamento de veículos.
— Já perdi seis ou sete amigos ao longo dos anos em acidentes nessa rodovia. Prometem que ela vai ser duplicada, mas já não tenho esperança de que a obra vá sair — lamenta Juliano Wilhelm, 31 anos, proprietário de uma borracharia localizada à margem do asfalto.
A demora se explica por outra razão comum para o congelamento dos projetos: a falta de dinheiro. A assessoria de comunicação do Dnit sustenta que o orçamento federal deste ano prevê R$ 178 milhões para destravar as obras da rodovia, mas “a retomada dos trabalhos depende da sanção da Lei Orçamentária Anual de 2023 e, consequentemente, da liberação dos recursos”.
Embora a fragilidade das atuais fontes de informações torne temerária a comparação entre o cenário atual e períodos anteriores, os dados disponíveis sugerem que o Estado também sofre com uma queda no nível de investimento federal. O número total de obras previstas era de 2,3 mil em 2018 (com 42% de paralisação), e de 1,2 mil no ano passado. O cenário é comum a todo o país.
— Em uma série histórica iniciada em 1947, tivemos o pior índice de investimento público em relação ao PIB no Brasil em 2017, e o segundo pior foi 2021 — observa Aragon.
Em termos nominais, os gaúchos tinham previsão de receber R$ 38 bilhões para todas as obras federais cinco anos atrás, contra uma expectativa de R$ 7,7 bilhões no ano passado.
Diagnóstico das principais causas de interrupção
O documento Lista de Alto Risco da Administração Pública Federal elaborado pelo TCU elenca os motivos mais frequentes para a suspensão de obras no país
- Deficiências de projeto: erros na elaboração dos projetos, projeto básico deficiente e planejamento inadequado.
- Insuficiência de recursos financeiros: falta de verba para cumprir o cronograma previsto, incluindo contrapartidas dos “entes subnacionais”, que podem ser Estados ou municípios.
- Baixa capacidade institucional: falta de capacidade técnica, incluindo de Estados e municípios, para conduzir ou monitorar as obras – que muitas vezes são executadas de forma local por meio de convênios com a União.
- Limitação dos sistemas de informação e gerenciamento: sistemas de monitoramento pouco confiáveis, incompletos ou ineficientes para proporcionar decisões no tempo correto e adequadas por parte dos gestores. Ou seja, a falta de acompanhamento cria problemas que só são percebidos tarde demais.
- Ausência de cadastro único: falta de plataforma centralizada que permita registrar, de forma confiável e em tempo adequado, informações relevantes e padronizadas sobre a execução de obras públicas.
- Falta de diálogo entre poderes: falhas na relação entre Executivo e Legislativo no processo de alocação orçamentária, para garantir os recursos necessários a finalizar as obras iniciadas.
Solução exige melhor planejamento e controle dos projetos
Em entrevista à Rádio Gaúcha, na sexta-feira (6), o ministro-chefe da Casa Civil, Rui Costa, garantiu que o novo governo federal tem como prioridade concluir as milhares de obras paralisadas no país.
— A prioridade número um, paralelo a pensar, planejar e iniciar novas obras, é concluir as existentes. Não faz sentido nenhum virar as costas para as obras que não estão conclusas e apenas iniciar novas — afirmou o ministro.
Especialistas em administração pública consultados por GZH, porém, sustentam que é preciso mais do que terminar o que está inconcluso para evitar o futuro desperdício de recursos públicos. Saídas estruturais para o problema envolvem melhor formação de servidores, recriação de plataformas centralizadas de monitoramento e garantias de contar com o recurso necessário para concluir os trabalhos antes de começá-los.
— A maioria das paralisações decorre da fragilidade técnica na concepção dos projetos. É claro que existem outras justificativas, como o abandono da obra pela empresa contratada ou a judicialização de questões inerentes à contratação ou execução. Mas a maioria dos casos decorre de problemas técnicos — avalia o mestre em Direito e especialista em Gestão Pública Ney Francisco Hoff Júnior.
Para Hoff, é importante aumentar o número e melhorar a qualificação de servidores voltados especificamente a planejar e monitorar esse tipo de iniciativa. O professor de Administração Pública da UFRGS Aragon Érico Dasso Júnior lembra que muitas prefeituras de menor porte, ao executar obras mediante convênio com a União, contratam consultorias para acompanhar a execução do serviço – o que pode ser uma armadilha:
— As consultorias operam durante aquele período e, quando acaba, não deixam nada para o município, não formam quadros, apenas resolvem um problema pontual já que os contratos não falam em transferência de conhecimento (para os servidores).
O relatório do TCU aponta 76 contratos que foram suspensos por "dificuldade técnica" do tomador do recurso no Estado, ou seja, da prefeitura que recebeu a verba mediante convênio com a União para implantar alguma melhoria. Para Dasso, o caminho mais indicado para cidades com esse tipo de dificuldade pode envolver parcerias com instituições de Ensino Superior para qualificar seus servidores ou a formação de consórcios com outras prefeituras para unir esforços e otimizar a disponibilidade dos profissionais mais habilitados.
O especialista reforça ainda a necessidade de o país retomar plataformas mais centralizadas, organizadas e de fácil acesso à população para cadastrar e monitorar o avanço de iniciativas país afora.
— Eu costumava acompanhar o painel de obras do governo federal, mas está desatualizado desde o início do governo anterior — lamenta o professor da UFRGS.