Familiares de vítimas da maior tragédia do Rio Grande do Sul, o incêndio da boate Kiss, estão surpresos. Estranham que os policiais que investigaram as causas do desastre ocorrido em Santa Maria em 2013, decisivos na apuração dos acontecimentos, não serão ouvidos durante o julgamento dos quatro acusados pelo homicídio de 242 pessoas. O júri começa em 1º de dezembro.
Os delegados Marcelo Arigony e Sandro Meinerz não foram arrolados como testemunhas de plenário, as que são ouvidas durante o júri. Nem seus subordinados. Na fase de instrução do processo judicial, o maior da história do Rio Grande do Sul, eles tampouco foram intimados pelo Ministério Público (MP). Acabaram depondo, mas a convite de advogados dos réus.
A raiz dessa ausência dos delegados no tribunal parece estar na grande divergência de enfoque entre a Polícia Civil e o Ministério Público a respeito dos culpados pelo incêndio na Kiss. Os próprios delegados desconfiam disso, embora evitem comentar suas suspeitas. É que os policiais apontaram 28 pessoas como responsáveis pelos fatos que levaram à tragédia em Santa Maria, enquanto os promotores de Justiça acharam provas contra oito pessoas.
E o que os delegados acham de não serem ouvidos no processo? Mesmo de forma velada, eles não escondem sua frustração. Arigony e Meinerz conduziram uma investigação que gerou 13 mil páginas de documentos e pensam que deveriam ser chamados para relatar o que viram e ouviram.
— Acho uma falha de estratégia tremenda não tomar depoimento de um policial que ouviu 300 testemunhas, como eu. É lógico que serão levados sobreviventes para falarem do caso deles, particular, chocante. Certíssimo. Só que os policiais que investigaram podem falar de 40 casos. Eles têm uma visão global de um drama que atingiu centenas de pessoas — pondera o delegado Meinerz, hoje diretor regional da Polícia Civil em Santa Maria.
Arigony, que na época da tragédia era delegado regional e chefiou as investigações, tem opinião semelhante a de seu colega. Hoje titular de uma delegacia de bairro em Santa Maria, ele admite que a prerrogativa de escolher testemunhas é do MP e da defesa, mas lembra que os policiais tomaram mais de mil depoimentos.
— O depoimento de um delegado traria no mínimo um panorama mais amplo dos acontecimentos, dos fatos pregressos ao incêndio, de quem fez ou deixou de fazer alguma coisa. Lastreamos nossas conclusões em provas, não em sentimentos — resume Arigony.
GZH procurou a promotora Lúcia Callegari, que participará da acusação do Caso Kiss e já atuou em mais de mil júris. Ela afirma que costuma convocar policiais que investigam casos de repercussão e ressalta não ter participado da escolha das testemunhas requisitadas pelo MP. Elas foram elencadas por promotores de Santa Maria, na fase de instrução processual.
Lúcia pondera que a dispensa dos delegados pode ter ocorrido devido ao número escasso de testemunhas permitidas para depor no júri, apenas cinco para cada parte (acusação e defesa).
— Procuro ouvir policiais no júri, mas é comum que promotores prefiram uma testemunha direta ou vítima do crime, não quem trabalhou para colher provas. Agora já estão escolhidas as testemunhas. É hora de conseguir um resultado justo, a responsabilização dos culpados — conforma-se Lúcia.
Polícia responsabilizou pela tragédia da Kiss três vezes mais pessoas do que o MP
O ambiente entre policiais civis e promotores de Justiça que atuaram no Caso Kiss nunca mais foi fraternal desde que ocorreu a apresentação da denúncia por parte do Ministério Público, dois meses após a tragédia, em 2013. A divergência entre as duas partes encarregadas de buscar culpados foi profunda e irreversível – o que pode explicar porque policiais não serão chamados para falar no maior júri da história gaúcha.
O inquérito policial apontou 28 pessoas como responsáveis pela cadeia de acontecimentos que resultou no incêndio da Kiss. Dessas, 16 foram indiciadas criminalmente: nove delas por homicídio doloso e tentativa de homicídio (entre elas dois bombeiros vistoriaram a boate), as demais por fraude processual (forjar documentos que viabilizaram a abertura da danceteria). Com relação às outras 12 pessoas, os policiais sugeriram processo de improbidade administrativa, por omissões que levaram à tragédia. Nesse grupo estavam funcionários da prefeitura e o próprio prefeito santa-mariense da época, Cezar Schirmer.
Já os promotores de Justiça denunciaram oito pessoas, no total. Quatro delas, por homicídio doloso. As outras por fraude processual envolvendo licenças de funcionamento da boate Kiss e falso testemunho.
As contrariedades também aconteceram pelo fato de a Polícia Civil encaminhar à chefia do Ministério Público, para análise de possível irregularidade, cópia de um inquérito civil no qual um promotor de Justiça de Santa Maria permitiu o funcionamento da Kiss, mediante obras que minimizassem o ruído. O incêndio aconteceu logo depois.
Essa permissão para que a boate abrisse foi muito criticada por familiares das vítimas, que chamaram o promotor de irresponsável, em cartazes espalhados pela cidade. E um dos réus abriu notícia-crime contra o promotor.
Tanto no MP como no Tribunal de Justiça as queixas contra o promotor foram arquivadas. A visão do MP também preponderou em relação à responsabilização de servidores públicos. Nenhum deles foi julgado por homicídio e a maioria dos supostos casos de improbidade foi arquivada.
O delegado Marcelo Arigony adotou postura diplomática e não quer polemizar, às vésperas do julgamento. Mas no ano passado, ao ser marcado o júri, ele criticou com veemência, em entrevista, o reduzido número de pessoas que será julgado pela tragédia:
— O júri com somente quatro pessoas no banco dos réus não possibilitará que a justiça seja feita. Para ser feita justiça, precisaria de mais gente sendo julgada. Não adianta condenarmos apenas uma pessoa, três ou quatro, enquanto há diversas outras que também têm responsabilidades. O caso Kiss é um conjunto de negligências que gerou o evento. Então, cada uma daquelas pessoas indiciadas tem um pouquinho de responsabilidade — concluiu.