O micro-ônibus utilizado por servidores da prefeitura de Capela de Santana para transporte — e posterior abandono — de ao menos um dos cães que vivia no terreno do prédio do administração municipal teve sua planilha de registros alterada, no dia do sumiço dos animais.
Bernardão, Quinha e Chocolate tinham casinhas instaladas no pátio da prefeitura, a menos de um metro de distância da guarita de vigilância. No último 21 de setembro, eles deixaram de ser vistos no local, gerando uma mobilização dos moradores e de alguns funcionários do município, que realizavam vaquinhas para compra de ração, medicamentos e consultas veterinárias.
Imagens de câmeras de segurança obtidas pela Polícia Civil mostram a silhueta de um cachorro no veículo oficial, por volta das 16h30min do mesmo dia. À polícia, a Secretaria de Saúde informou que o ônibus levou pacientes até Porto Alegre pela manhã, retornando ao Vale do Caí no início da tarde. Depois disso, não teve autorização para uma nova viagem. Há, segundo o escrivão Jonatan Maciel, uma “discrepância” entre a quilometragem anotada e o odômetro do automóvel.
— Tem 47 quilômetros que não estão anotados, e pelas imagens vimos que o micro-ônibus regressou até a cidade uma hora depois da saída — detalha Maciel.
Nove dias depois do abandono, Chocolate foi encontrado em uma estrada da Várzea do Rio Branco, em São Sebastião do Caí, cerca de 25 quilômetros do município. Comerciantes interrogados pelos policiais dizem ter visto os outros dois cachorros às margens da RS-122, rodovia na mesma região, o que reforça duas suspeitas: os três animais foram transportados juntos, e a contradição no que deixou de ser documentado visava ocultar o crime de maus-tratos e abandono.
Segundo o delegado Alexandre Quintão, responsável pelo inquérito, os funcionários serão indiciados nesse artigo, e podem pegar de 2 a 5 anos de prisão.
Clima de consternação na cidade
O desaparecimento dos cães comunitários virou o principal assunto na cidade de 12 mil habitantes, que conserva colinas arborizadas, extensas propriedades e um clima pacato. Durante toda a manhã desta terça-feira (5), a reportagem de GZH conversou com ao menos duas dezenas de pessoas no município, entre trabalhadores, clientes de restaurantes, pedestres e moradores em suas residências.
— A cidade já é pequena, aí acontece uma coisa dessas, não se fala em outra coisa — afirma a lojista Jaqueline Amorim, 32 anos.
A aposentada Enira Dorneles da Rosa, 70 anos, se diz triste ao imaginar como estão os dois cães que ainda não foram encontrados.
— Está todo mundo chocado. Chorei quando meu cachorrinho morreu e me dá pena imaginar eles passando fome. Não pode ficar assim — lamenta.
Boa parte dos entrevistados pediu para não ser identificado, com receio de represálias do responsável por ordenar o abandono dos cães.
— Ele (o cão Bernardão) vinha sempre dar bom dia. Olha aqui a foto dele, para que fazer isso com um bichinho que não faz mal para ninguém? — questiona um jovem, com imagens dos pets no telefone celular.
Para o mecânico industrial aposentado Maurício Luiz Klein, 69 anos, há um exagero no tratamento dado aos vira-latas. Ele acredita que não houve qualquer crime.
— Alguém passou e levou pra casa esses vira-latas. Isso que estão falando é uma desmoralização para o município, moro aqui há 67 anos, desde criança, ninguém conhece mais Capela do que eu — garante o idoso.
Prefeito se nega a dar entrevista
No prédio público, permanecem as casas de madeira que abrigavam os animais. Pintadas de branco, são protegidas com telhas de amianto. De um lado da prefeitura, há um posto de saúde 24 horas e no extremo oposto o edifício da Secretaria da Saúde. Por estarem alojados em uma área com muita circulação, os investigadores questionaram se algum ataque havia ocorrido recentemente. A resposta de todos os interrogados foi negativa.
— Não há relato de que morderam alguém, ou que eram agressivos entre servidores do posto, da prefeitura e com os populares — complementa o policial.
A fim de ajudar a desvendar o mistério que ronda a retirada dos animais da sede, o prefeito foi procurado pela reportagem, mas não atendeu ao pedido de entrevista. Na recepção da prefeitura, a informação era de que ele estava fora do município, sem detalhamento da localização exata. Seu assessor de imprensa disse que ambos saíram cedo da cidade, para uma agenda, e não foi autorizada manifestação oficial de outra fonte do Município. Nesta semana, o político deve prestar depoimento formal ao delegado.
Ontem, uma nota foi emitida, garantindo que o caso será apurado em uma sindicância interna do poder público. A polícia solicitará uma cópia da apuração. Qualquer informação sobre os cães pode ser repassada à Polícia Civil, que garante anonimato na denúncia. Os telefones para contato são (51) 3698-1377 e (51) 98502-0425 (com WhatsApp).