Em meados do século passado, Carmelindo Gomes de Freitas tomou uma decisão: trocaria o engenho de cana-de-açúcar por uma vaga em uma montadora de componentes automotivos. A lida na roça sempre foi motivo de orgulho para a família, entre as pioneiras na fabricação de rapaduras de Santo Antônio da Patrulha, no Litoral Norte, mas a depreciação da saúde tomava um caminho oposto ao da compensação financeira do colono, e tampouco concedia um respiro para os estudos.
Confiante de que poderia mudar o rumo desse destino, o agricultor seguiu para a entrevista de emprego. Na sala da companhia recebeu um formulário, documento que exigia nome, endereço e outros dados pessoais. As lacunas foram compreendidas. Ele sabia ler. Desenhar as palavras, não.
— Fiquei frio quando ele entregou o papel. Levei três, quase quatro dias para preencher aquela ficha. Fiquei muito triste com aquilo — relembra.
Mesmo analfabeto, ele foi contratado, permanecendo 17 anos na fábrica. No período, treinava a caligrafia com o dedo, no ar, como se o espaço fosse uma folha em branco que não oferece risco de erro — expediente que o ajudava a assinar contracheques e outras formalidades.
Atualmente com 85 anos, Carmelindo diz com orgulho que alcançou domínio sobre as letras: 15 anos atrás, concluiu os ensinos Fundamental e Médio pelo sistema de educação de jovens e adultos. Na conquista mais recente, obteve uma vaga em História na Universidade Uniasselvi, de Santa Catarina, por ter atingido uma boa nota no Enem, matrícula confirmada pela administração da escola de nível superior. A inscrição, garante, foi realizada por um único motivo:
— Não me sentia completo. Hoje, o meu ser transborda de alegria.
As aulas do experiente aluno começaram há pouco meses, e são remotas. Pela idade avançada, que o coloca no grupo de risco ao coronavírus, não planeja frequentar as salas, locais que, tem certeza, ensinaria aos colegas boa parte da história presenciada in loco.
De pouco trato com a tecnologia, o estudante viaja a Gravataí, na Região Metropolitana, para utilizar o computador de uma das filhas no momento das atividades. Carrega, de todo jeito, impressos com o logotipo da faculdade, pois diz ter mais jeito com as folhas.
— Estou lendo um livro sobre o positivismo agora — afirma, sobre uma obra que detalha a filosofia francesa do século 19, enquanto posa para fotos na propriedade.
Na última sexta-feira (20), seu Carmelindo foi entrevistado ao vivo na Rádio Gaúcha. Relembrou de quando o pai, carreteiro, viajava o Brasil sintonizado na emissora. Ao jornalista David Coimbra, contou sobre o currículo do curso.
— O lema da bandeira do Brasil é positivista — complementou o apresentador do Timeline e colunista de ZH.
Provocado sobre substituir David nas páginas de Zero Hora, em um futuro imprevisível, preferiu não se comprometer. A dedicação aos temas de casa, todavia, gera um puxão de orelhas da esposa, Margarida Guimarães Freitas, 83 anos, com quem teve sete filhos.
— As vezes ele passa mais tempo nos livros e não me dá muita atenção — reclamou, ao vivo na Gaúcha, arrancando gargalhadas dos apresentadores.
Carmelindo e a mulher vivem na localidade Costa da Miraguaia, zona rural de Santo Antônio da Patrulha. O feito alcançado por ele foi revelada pelo repórter Hermogenes Gomes da Silveira, da Folha Patrulhense.
— Tenho 73 anos de idade, 56 anos de corrida nesta profissão, e essa é uma das mais sensacionais histórias que já contei — afirma o jornalista.
Ao lado dos filhos e de uma neta — professora, para deleite do avô —, o agricultor demonstra o sentimento de dever cumprido, mesmo que carregue planos de vestir toga, apanhar o diploma e realizar escavações em propriedades antigas da cidade, onde acredita haver muita história para contar. A todas as docentes que passaram por sua formação, agradece, e recebe de volta elogios.
— Foi um privilégio ter um aluno como ele, um orgulho para toda a comunidade. É um exemplo de vida — diz Aura Maria dos Santos Martins, diretora do Núcleo Estadual de Educação de Jovens e Adultos Rizoma, frequentado por ele em 2006.
Também na última sexta, a Escola Estadual de Ensino Infantil e Fundamental Jovelino Theodoro, que acolhe 110 crianças da localidade, completou 65 anos. Com direito a bolo e muitos doces a base de melado, a diretoria prestou uma homenagem ao ex-aluno — para ser mais exato, Carmelindo recebeu lições do professor que dá nome à instituição, antes de o colégio existir.
— Ele ia nas regiões e dava aula para todo mundo. Foi meu primeiro professor, mas eu comecei a trabalhar com nove anos, no engenho tocado a boi, e tive de parar. Por isso eu digo hoje: crie coragem, erga a cabeça, estude, vá em frente, nunca é tarde — sugeriu o futuro historiador.
Confira a entrevista do universitário de 85 anos à Rádio Gaúcha: