O sol recém havia nascido sobre a Lagoa de Santo Amaro, formada por um braço do Rio Jacuí, naquele amanhecer de fevereiro, quando o pescador Anderson Flores, o Quininho, pôs-se a recolher as redes mergulhadas na noite anterior. A surpresa veio logo que os primeiros peixes foram retirados da água. Da cabeça para baixo, as tambicas tinham o corpo todo descarnado, o espinhaço à mostra.
Bastaram duas remadas para esclarecer o misterioso ataque. Mais à frente, a mesma rede havia capturado três piranhas. Desde então, a pescaria se tornou inglória para as 70 famílias que vivem da atividade em General Câmara, a 90 quilômetros de Porto Alegre. Os peixes sumiram, a renda minguou. A única abundância vinda do rio são as palometas, cada vez maiores e mais vorazes.
Nativas do Rio Uruguai, as piranhas vermelhas de água doce são uma espécie invasora no sistema fluvial gaúcho. Vistas com frequência na fronteira — somente em Rosário do Sul foram registrados mais de cem ataques a banhistas no verão de 2020 —, agora estão cada vez mais próximas do Rio Guaíba, colocando em alerta as autoridades ambientais do Estado. Desde o início do ano proliferam registros da presença do animal na bacia do Rio Jacuí, em Rio Pardo, Vale Verde, Cachoeira do Sul e General Câmara.
— Eu pescava 30 quilos de peixe por dia. Agora pesco dois, três quilos. Tirava R$ 300 por dia, agora são R$ 100 por semana — queixa-se Quininho, vice-presidente da Associação de Pescadores do município.
Ninguém sabe ao certo explicar como as palometas infestaram os rios e lagoas do Estado. Pesquisadores especulam que os peixes tenham sido tragados pelas tubulações usadas para irrigar lavouras às margens dos rios Vacacaí e Ibicuí, onde se encontram as bacias do Uruguai e do Jacuí. Aos poucos, as piranhas foram se reproduzindo e, com comida farta, aumentando de tamanho.
— No início, elas tinham três centímetros. Hoje já tem 12 centímetros. Devoram tudo, tambica, viola e até cascudo, que tem o couro mais duro. Elas são pequenas, mas atacam de bando, quatro, cinco comendo nossos peixes ao mesmo tempo. De cada 30 peixes que têm na rede, elas comem 28, 29 — conta Everson Flores.
No distrito de Santo Amaro, colônia de pescadores localizada a 12 quilômetros de General Câmara, a situação é ainda mais dramática devido à queda no nível da água. Construída em 1974, a barragem de Amarópolis tem 18 das 84 comportas emperradas. A falta de manutenção fez com que a água recuasse mais de três metros, tornando a pescaria uma atividade ainda mais escassa.
— Não tem mais traíra, jundiá nem dourado, que seria um predador natural das palometas. É desgraça em cima de desgraça. Primeiro a barragem, que tirou os melhores peixes. E agora as palometas, que estão comendo os que restaram — reclama Alessandro Flores.
No ano passado, Alessandro gastou R$ 10 mil na reforma do Amazonas, barco de 12 metros de comprimento e duas toneladas em cujo convés repousam 54 redes de pesca. Há oito meses, a embarcação está encalhada no que antes era a beira da água e hoje se tornou um solo seco, rachado pelo sol e mais de cem metros distante da água.
— O barco está se estragando, pegando ferrugem em tudo. Mas não tem nem como tirar ele daqui, porque está longe da água e o chão não é firme para encostar uma patrola — desabafa Alessandro.
A invasão biológica das piranhas se tornou um problema social em General Câmara. Sem a renda do pescado, as famílias enfrentam dificuldades de subsistência. O prefeito Helton Barreto manteve contato com a Secretaria Nacional da Pesca, mas a pasta só tem mecanismos de auxílio financeiro durante a piracema, com o pagamento do seguro-defeso. O caso foi remetido para o Ministério da Cidadania, mas Barreto ainda aguarda uma audiência com o ministro João Roma.
— Vamos pedir que as famílias recebam um benefício eventual semelhante ao seguro-defeso, de ao menos um salário mínimo. Se não for possível, a própria prefeitura vai ter de pagar um auxílio, mas só temos recursos para pagar R$ 500 por mês, durante três meses, e para quem provar que vive exclusivamente da pesca — afirma Barreto.
Enquanto as palometas avançam, pesquisadores e autoridades ambientais estudam formas de contenção. Segundo o analista ambiental do Ibama Maurício Vieira de Souza, são poucas as iniciativas capazes de surtir efeito no curto prazo.
— Trata-se de uma invasão silenciosa, só percebida quando já está nas nossas águas, e muito difícil de ser contida. Até agora, não temos nenhuma ação em curso e não há muito o que fazer. Ao poucos, as palometas vão sendo integradas à cadeia alimentar, mas isso também depende da capacidade de resistência do ambiente — afirma Souza.