SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - A mudança na rotina de pais obrigados a ficar em casa com seus filhos está sendo bem menos drástica para um grupo de famílias que fazem da presença domiciliar de crianças e adolescentes uma causa.
São os adeptos do "homeschooling", ou educação domiciliar, que há anos trabalham pela regulamentação dessa prática.
A nova realidade de isolamento praticamente universal de famílias em razão do coronavírus, esperam eles, pode dar um inesperado impulso a esse objetivo. "Parece que da noite para o dia todo o país está sendo obrigado a fazer homeschooling", diz Carlos Vinicius Reis, diretor de Relações Institucionais da Aned (Associação Nacional de Educação Domiciliar).
Ele se refere ao fato de que muitas escolas têm passado a seus alunos atividades pedagógicas para o período de recesso forçado. Práticas como a leitura para pais e filhos vêm sendo incentivadas.
São cerca de 8.000 famílias no Brasil que aderem a essa forma de ensino, segundo a Aned. Ou cerca de 15 mil crianças e jovens recebendo educação em casa, sobretudo de seus pais, embora a prática não esteja regulamentada. "Não temos nada contra escolas. O que sempre defendemos é que as famílias tenham liberdade de oferecer essa modalidade a seus filhos", diz Reis.
Os pais que preferem educar seus filhos em casa amparam-se em uma decisão do Supremo Tribunal Federal de 2018, que considerou a prática constitucional, mas determinou ao Congresso que a regulamentasse. Também mencionam a Declaração Universal dos Direitos Humanos e o Pacto de San José, documentos internacionais reconhecidos pelo Brasil, como justificativa jurídica para a prática.
Muitos, no entanto, educam seus filhos num limbo jurídico, sem acesso a exames nacionais e vestibulares.
Em geral, os pais que aderem ao homeschooling citam a má qualidade do ensino como razão para a opção. Alguns, sobretudo conservadores, mencionam ainda um suposto viés de esquerda nas escolas públicas e privadas.
Segundo Reis, que tem filhos de 7, 10 e 11 anos de idade em esquema de educação domiciliar, o programa pedagógico oferecido por ele e sua mulher segue inalterado nesse período de pandemia. "Continuamos 100% com nosso cronograma, mas isso não quer dizer que não estejamos sendo afetados pelo coronavírus."
O ensino domiciliar, de acordo com ele, envolve também atividades como visitas a museus, bibliotecas e centros culturais, além de encontros de estudantes para aulas coletivas em casas ou espaços públicos. Tudo agora foi suspenso.
As famílias também recorrem a sites e material curricular disponível na internet para educar os filhos. "Se o ensino domiciliar já estivesse regulamentado, a situação agora estaria mais administrável. Seria uma alternativa concreta para todos neste momento", diz.
As famílias que aderem ao homeschooling, diz, reclamam de serem estigmatizadas como fanáticas e obscurantistas. "Esperamos que este momento proporcione uma maior sensibilidade da população ao que defendemos, que é simplesmente liberdade de educar".
Em abril de 2019, o governo Jair Bolsonaro enviou projeto de lei ao Congresso regulamentando o ensino domiciliar, cumprindo uma promessa de campanha e fazendo um aceno à base conservadora do governo.
O projeto foi apensado a outros semelhantes que já tramitam na Câmara. A relatora, deputada Professora Dorinha (DEM-TO), diz que pretende aproveitar o momento para pedir prioridade de votação do projeto na próxima reunião de líderes partidários.
"As crianças vão ficar sem ir para a escola durante dois meses no mínimo. É uma oportunidade de conhecer melhor o que está por trás do homeschooling", afirma a deputada.
O relatório dela autoriza a prática, mas coloca como condição a obrigatoriedade da vinculação do estudante a uma escola, optando na matrícula pela modalidade de ensino domiciliar. Assim, haveria um laço com o sistema formal de educação e a possibilidade de que autoridades acompanhem o ensino e inspecionem o ambiente domiciliar onde as aulas acontecem.
O relatório prevê ainda que alunos em ensino domiciliar façam exames nacionais e regionais. "A criança vai ser acompanhada. Tem uma série de amarras que eu coloco, para dar equilíbrio aos interesses das famílias e do Estado."
Segundo a Aned, ao menos 60 países preveem a possibilidade de ensino domiciliar, entre eles Estados Unidos, Rússia, Portugal, França e Austrália. Nos EUA, onde a prática chegou com os primeiros colonizadores, no século 17, são cerca de 2 milhões de estudantes nesse modelo.
Estudioso do homeschooling americano, o professor Milton Gaither, do Messiah College, na Pensilvânia, afirma que as medidas de restrição vão aumentar em grande escala o conhecimento das pessoas sobre a essência do ensino domiciliar.
"Esse experimento maciço de isolamento social dará a um enorme percentual da população alguma experiência com essa metodologia de ensino", diz Gaither, autor de "Homeschool: an American History" ("Ensino Domiciliar: uma História Americana").
Para ele, haverá uma curva de aprendizado para pais que trabalham estabelecerem rotinas saudáveis com crianças em casa. "Imagino que veteranos do homeschooling provavelmente terão muitos conselhos úteis para dar", afirma.
Reis, da Aned, concorda, e aproveita para dar o seu conselho para pais aflitos.
"Aproveite a riqueza desse tempo com os filhos para o aprendizado deles. Desenvolva o hábito da leitura em família, por exemplo. Não há mistério inalcançável nisso."