A fala cansada, as mãos calejadas e as roupas sujas de lama refletem o cansaço de uma cidade que tenta se reerguer há quase uma semana. "Acabou tudo" e "perdeu tudo" são as frases que mais se ouve em Iconha, a uma hora e meia de Vitória (ES).
O município foi o mais atingido pela chuva que varreu parte da região sul do Espírito Santo na noite da última sexta (17), deixando sete pessoas mortas, uma desaparecida e quase 3 mil sem casas. Ela está em estado de calamidade pública, junto a Alfredo Chaves, Rio Novo do Sul e Vargem Alta.
— Queria acordar e ver que tudo é mentira — conversa uma mulher na calçada.
— Isso aqui virou uma segunda Brumadinho — comenta outro enquanto a comunidade tenta, cantinho por cantinho, tirar os litros de água e terra que invadiram, reviraram e destruíram seus imóveis.
A comparação com a cidade mineira atingida há um ano pelo rompimento da barragem tem sentido. O que causou a devastação de Iconha, com 14 mil habitantes, foi uma enxurrada que desceu de uma só vez pelo rio de mesmo nome, alimentada pelo nível altíssimo de chuva na sua cabeceira.
— O rio não entendeu que aqui não era rio. Para ele era tudo rio — define o contador Félix Menegueli, 36 anos, apontando para a rua principal.
— Só não morreu mais gente porque a "cachoeira" desceu por volta das 20h, quando todos ainda estavam acordados — completa.
— Em 10 minutos eu perdi o que construí em 10 anos — lamenta a radialista Sheila Cruz, 30. Sem domínio das lágrimas, ela repete a palavra "livramento" para explicar o fato de ter sobrevivido com sua filha de sete anos porque subiu no terceiro andar de um prédio, que caiu horas depois.
O rio não entendeu que aqui não era rio. Para ele era tudo rio
FÉLIX MENEGUELI
Morador de Iconha
Lá de cima, elas assistiam a dois carros sendo arrastados e ouviram a casa ao lado desabando, sem saber se era a delas porque a energia acabou. Naquela madrugada o escuro foi um dos muitos dramas dos moradores, que só viram a luz voltar um dia depois.
Não faltam histórias de gente que passou horas presa em alguma laje ou rua alta até a água baixar. Ou pior: agarrada a um coqueiro, como um senhor de 70 anos que só desceu de lá completamente nu, ou segurando no batente da janela, como um casal de idosos. Em ambos os casos, só o rosto ficou para fora da água.
Vinte bairros isolados
Mais de 30 pontes caíram e cerca de 20 bairros ainda estão isolados na região, recebendo comida e mantimentos através dos bombeiros. Só nesta quinta (23) a corporação, com 200 agentes no total, conseguiu começar a ajudar a população na limpeza.
Chegou também pela manhã a tão esperada caravana do Exército. Cerca de 50 militares desembarcaram em Iconha após um pedido da prefeitura. Dias antes, o governo estadual havia dito que eles não seriam necessários, o que causou revolta na população.
A Defesa Civil Nacional, subordinada ao Ministério do Desenvolvimento Regional, diz que técnicos estão na região desde o primeiro dia após as chuvas avaliando os danos e se reunindo com as autoridades locais. Eles agora esperam o estado e o município levantarem os danos para pedirem recursos.
O governador do Espírito Santo, Renato Casagrande (PSB), anunciou que vai repassar R$ 3 mil às famílias com renda de até três salários mínimos. Às empresas, prometeu a abertura de linhas de financiamento emergencial, o estorno do ICMS e o adiamento dos prazos de dívidas com o BNDES, entre outras medidas. Também foi aberta uma conta para doações às vítimas.
Vice-prefeito perdeu R$ 1 milhão
Descalço no meio da rua, o vice-prefeito de Iconha, Mauri Monteiro, é um dos que tenta recuperar seus dois comércios, contabilizando um prejuízo próprio de mais de R$ 1 milhão. Ele estima que quase 100% das 250 empresas na cidade foram atingidas.
— Nós não temos mais diferença de classe. O funcionário tá sem emprego, e o patrão tá com dívida. Eu estou preocupada com o futuro — diz Arlene Bernarde, que tem coordenado a distribuição da alimentação pela igreja da cidade.
Ela já tem a entrega voluntária de mais de 3 mil refeições diárias garantidas até a próxima segunda-feira (27). De tempos em tempos, grupos passam em caminhonetes gritando "marmita!" e entregando garrafas de água mineral pelas ruas. A galocha é item quase obrigatório e já tem alguns modelos esgotados na capital.
O único hospital do município, destruído e com um carro na vertical ainda encravado na entrada, teve os atendimentos transferidos e improvisados no centro de assistência social Cras (centro de assistência social), na parte alta.
Além da distribuição de comida, a igreja abriga sete famílias desalojadas. Dessas, três passam pela sua segunda ou terceira tragédia. São refugiados venezuelanos como a balconista Ana Mota, 39, que chegou ao Brasil há um ano com o marido e os três filhos.
— Primeiro deixamos a família na Venezuela, depois vivemos na rua por um mês em Roraima, agora perdemos tudo de novo — diz, chorando. Mas ela não reclama:
— Aqui a fila para pegar marmita é de 30 pessoas, na fronteira era de 400 pessoas.
Para quem já vivia em Iconha há décadas, a enxurrada relembrou chuvas que atingiram o estado em 1994. Na ocasião, Marinalva Veridiano, 65, perdeu o filho de 17 anos em uma enchente.
— Dessa vez eu achava que ia morrer, só pensava nele. Ajoelhava na lama e dizia: Jefinho, misericórdia de Deus, vem socorrer mamãe.