Em Viamão, existe um ônibus que, mesmo sem sair do lugar, já conduziu centenas de crianças e adolescentes à dignidade. Atrás do volante está Losângela Ferreira Soares, que completou 50 anos na quinta-feira. Metade da vida dedicada ao trabalho voluntário na Associação Comunitária Beneficente Tia Lolô do Ônibus. Aliás, é assim que Losângela é realmente conhecida: Tia Lolô.
E, nesta semana, junto a ela, sua entidade também completa mais um ano de vida, o 25º. Os nomes e datas se misturam tanto que a moradora da Vila Orieta, no bairro Florescente, já não requisita presentes para si há muito tempo:
— Sempre digo que, no meu aniversário, eu quero cimento, madeira, roupas, calçados, comida. Enfim, coisas que eu possa reverter para as crianças e para o espaço que elas ocupam — explica.
Junto ao aniversário duplo, ainda comemora-se o Dia das Crianças. Assim, o 12 de outubro torna-se a cereja do bolo numa espécie de “semana anual da Lolô”.
Por isso, neste sábado, alunos, ex-alunos e não-alunos, pais, mães e quem mais quiser compartilhar alguns sorrisos estarão presentes na festa de Dia das Crianças da Tia Lolô.
Cachorro-quente, refrigerante, brechó e entretenimento para os pequenos, nada disso vai faltar.
Carinho
Ninguém fica desassistido, pois Lolô é como uma mãe – ou o que mais próximo de uma figura materna alguém possa ter. Diariamente, cada uma das mais de 80 crianças que cruzam os portões da instituição é recebida por ela com um sorriso. Ainda há os meninos e meninas que comparecem em dias alternados. Ao total, mais de 200 crianças e adolescentes estão cadastrados na associação.
Porém, assim como uma boa mãe, Lolô não deixa de exaltar o outro lado da “família”. Jamais toma para si todo o crédito pelos 25 anos de dedicação. Junto a ela, um time de voluntários, desde monitores até professores, atende aos “filhos”. Tem gente na cozinha, no saguão e no refeitório.
Voluntários fazem a diferença
Lolô acorda antes das 6h e logo parte para a verificação diária dos espaços. Um tempo depois, as voluntárias vão chegando, junto das crianças. Algumas mães, que trazem bebês, se voluntariam. Assim, dividem o tempo de cuidado dos recém-nascidos com os demais frequentadores. É o caso de Iracema Silva, 28 anos. A atendente, que deixou o emprego há um ano e meio, após o nascimento de uma filha, encontrou na associação um novo espaço para lidar com o tempo ocioso em casa.
— Além de trazer os filhos, também me sinto bem em ter este espaço para ajudar. Não considero um trabalho, mas, sim, uma família — relata.
Diarista que precisou deixar o serviço por problemas de saúde, Maria de Lourdes Santos Souza, 59 anos, é a comandante da cozinha. Voluntária da Tia Lolô há sete anos, é ela quem coordena e coloca a mão na massa durante o preparo das cinco refeições servidas aos frequentadores diariamente. Parte dos pequenos vai para a escola depois do almoço. Outros vêm pela tarde, depois da aula.
— Só quem é mãe sabe o quão agoniante é ter que deixar um filho em casa para trabalhar. Queria eu que, no meu tempo, existisse uma Tia Lolô para deixar meus filhos. Por isso venho aqui todo dia, me sinto feliz em fazer parte deste trabalho — comemora.
Com tanto a ser oferecido e nada a ser cobrado, Dia das Crianças é de segunda a sexta, das 8h às 17h. De sílaba em sílaba, Lolô garante que seguirá construindo o texto que rege a história de cada um que cruza os portões da associação:
— Se me oferecessem o prêmio da loteria ou a minha vidinha, eu iria seguir com a minha vidinha, pois tenho sido feliz assim há muito tempo — conclui.
Glórias e desafios da nova sede
Desde julho deste ano, o time de alunos e voluntários cresceu. O grupo precisou atravessar a Rua Pedro Moreira Lobato, saindo do ônibus e indo para a Estação Tia Lolô, nome que a nova sede da instituição recebeu. O prédio foi um presente do programa Caldeirão do Huck, da TV Globo, quando a associação foi escolhida para participar do quadro Um Por Todos, Todos Por Um, que estimula ações de relevância social nas comunidades em que estão inseridas. A aparição na TV também ajudou Lolô a conquistar mais professores voluntários, um desejo nutrido por ela há anos.
— Com o novo espaço, aumentaram as despesas, mas também o que conseguimos oferecer. Dos zero aos seis anos, eles ficam no ônibus. Depois, vêm para cá, aprender até os 14. O meu sonho é poder profissionalizar e fazer cada um sair daqui podendo conquistar um emprego ou uma vaga na faculdade — projeta Lolô.
No local aberto este ano, aulas de costura, pintura e informática, entre outras atividades, são ministradas por quem se disponibiliza a ir até o local. Dos panos de prato bordados e pintados com cola glitter, saem um dos sustentos da instituição. O programa da TV Globo também doou máquinas para impressão em camisas, canecas e chinelos. Assim, a marca Tia Lolô do Ônibus vai tentando chegar mais longe.
— Eu sempre ressalto que temos o antes do Luciano Huck e o depois. Ganhamos essa sede e todos os equipamentos. Algumas pessoas confundem, acham que ganhamos dinheiro. Não ganhamos. Precisamos tanto de doações quanto precisávamos antes — salienta.
Dificuldade escolar foi a motivação
A educação é o pilar vigente da associação desde quando foi criada, em 1994. Tudo começou com as dificuldades escolares de um dos filhos de Lolô. A mãe, preocupada, foi à escola em busca de orientações para colocar o filho em um turno de reforço escolar. Recebeu negativas. Resolveu, então, ela mesma dar as aulas ao rebento. Em três meses, a casa estava abarrotada de crianças que precisavam aprender a juntar sílabas e decorar o alfabeto, já que as escolas públicas não cumpriam suficientemente este papel.
Marido de Lolô, o serralheiro Sidnei Pinheiro Martins, 60 anos, recorda o período. Com tantas crianças dentro de casa diariamente, ficou difícil manter a rotina. Logo, a professora sem formação acadêmica, com ajuda do marido, espalhou bancos de madeira pelo pátio e esticou um lençol entre o tronco de uma árvore e o pilar do cercado de sua residência – uma maneira de amenizar a incidência do sol nos alunos.
Ali, ao relento, os trabalhos seguiram. Porém, qualquer intempérie transformava a aula numa correria. A situação comoveu um mecânico que tinha uma oficina ao lado da casa de Lolô – hoje a mecânica é comandada por um dos filhos da ativista social. O proprietário permitiu que ela utilizasse a carroceria de um ônibus que estava sem uso no terreno.
— Depois de alguns anos, esse ônibus foi vendido. Foi um dia muito triste quando levaram, as crianças choravam muito. E o cabo que usaram para rebocar arrebentou várias vezes, a gente ficava dizendo que o ônibus não queria ir embora — recorda Lolô.
"Ônibus virou símbolo"
Outro coletivo em desuso foi doado à instituição, dessa vez, em definitivo. Para evitar os saques e o vandalismo, Lolô empreendeu uma engenhoca que, hoje, é a alma da associação: levantou paredes ao redor da carroceria, que parece resguardada no interior de uma garagem.
— O ônibus é o nosso símbolo. As crianças chegam aqui ansiosas para conhecê-lo — relata.
O terreno onde fica a sede mais antiga é alugado há anos por Lolô. O novo espaço, construído depois da aparição na TV, está sobre o terreno da família. O grande sonho da moradora da Vila Orieta é comprar a área, para ter certeza da continuidade do trabalho.
— A gente corre atrás todo mês para conseguir pagar todas as contas. Tenho muito a agradecer a quem sempre nos doa, são quem mantém a associação viva. Se um dia eu realizar este sonho (comprar a área) vou saber que o trabalho seguirá por muito mais tempo — deseja ela.
Gurizada abre o coração
Os principais personagens dessa história só têm a agradecer. Como é costumeiro entre as crianças questionadas por um repórter curioso, poucas palavras e muitos sorrisos envergonhados surgem no rosto expressivo. Mas, quando indagados sobre uma mensagem para os 25 anos da instituição, abrem o coração.
— Eu amo muito ela — sentencia Vinicius Silva da Silva, 12 anos, que conheceu Lolô pela TV e pediu aos pais para frequentar a entidade.
Aos 10 anos, Natália Martins Hogberg, é uma veterana da instituição da Vila Orieta. Chegou aos dois anos, junto à avó, voluntária no local. Além de participar das oficinas, Natália cita os motivos que lhe fazem ir todo dia.
— Fiz muitos amigos e fico feliz em vê-los diariamente. Além disso, a comida é maravilhosa — diverte-se ela.
Uma dezena de filhos criados ali
A dona de casa Maria Elísia Vieira da Silva, 48 anos, orgulha-se de ser umas das fundadoras do trabalho voluntário junto a Lolô. Quando foi para Viamão em busca de um novo lar, com nove filhos a tiracolo, encontrou em Lolô o auxílio que precisava. Ao longo dos anos, mais uma filha chegou. Todos os 10 passaram pela associação, aponta Maria.
Mas o carinho entre ela e Lolô vai além do cuidado na associação. Após um incêndio que destruiu sua casa, foi a ativista social que mobilizou doações para erguer uma nova residência.
— Muito do que tenho, devo a ela. Sempre que precisei, me ajudou sem cobrar nada em troca — agradece Maria.
Chuva
O auxiliar de serviços gerais desempregado José Carlos Machado Ferreira, 28 anos, é ex-aluno. Foi num dia de chuva na infância, sozinho em casa, que José resolveu recorrer à associação. Ainda era época das aulas de reforço na sala de casa da Lolô. Mais de uma década depois, ele aponta como o trabalho lhe moldou:
— Foi essencial para eu ter força para continuar meus estudos. Terminei o Ensino Médio e ainda fiz alguns cursos — relembra.
Na semana passada, José participou de um curso de portaria oferecido por uma empresa de segurança a moradores e ex-frequentadores da associação. Mesmo adulto, nunca deixou de ser um dos meninos da Lolô.