A tarde corria tranquila naquela quarta-feira, 28 de agosto, em Ibirubá. As pessoas voltavam para o trabalho após o almoço e o dia ensolarado favorecia caminhadas pela praça central do município de 20 mil habitantes, encarapitado em uma coxilha a 416 metros de altitude, no noroeste do Estado.
A calmaria rotineira deu lugar a um frenesi por volta das 13h30min, quando um caminhão portando uma broca de seis metros de comprimento e 60 centímetros de diâmetro parou ao lado da praça, em frente ao Bar do Saci. Sem aviso prévio, tampouco autorização por escrito de qualquer autoridade, o jornalista Clóvis Messerschmidt mirou um "x" pintado com spray amarelo no calçamento de paralelepípedos e ordenou:
— Pode furar.
Para Clóvis, seria um dia histórico. Há quatro anos, ele persegue o que chama de "o mistério dos túneis de Ibirubá", uma suposta rede subterrânea que teria servido de abrigo e esconderijo para nazistas em fuga rumo ao Chile e à Argentina após a 2ª Guerra Mundial. Desde que o jornalista publicou os primeiros relatos sobre a existência dos ramais que teriam sido escavados sob casarões antigos, os moradores aguardam com expectativa o desfecho da história. Mas, para frustração geral, após meia hora de perfuração, a broca entrou quatro metros chão adentro e nada de túnel.
— Aqui não tem — atestou o arqueólogo André Soares, convidado a acompanhar a operação.
Fundada em 1955, 10 anos após a morte de Adolf Hitler e a rendição da Alemanha, Ibirubá começou a tomar forma em 1899, quando chegaram à região os primeiros imigrantes alemães. Seus descendentes ainda hoje formam cerca de 80% da população local, o cemitério é repleto de sepulturas antigas com inscrições na língua pátria e é comum flagrar as pessoas conversando em alemão nas ruas e no comércio. Ainda hoje, quando um fala e o outro não entende, o emissário franze o cenho e não esconde a decepção com o interlocutor. Entre os anos 1960 e 1970, rumores sobre a passagem de nazistas atraíram a imprensa nacional à cidade, motivando reportagens em Zero Hora, na revista O Cruzeiro e no jornal Correio da Manhã, do Rio.
Todo esse passado obscuro ressurgiu agora, com os famigerados túneis secretos. Para Clóvis, a verdadeira história seria desvendada em pouco tempo. Malogrado o primeiro furo, bastava trocar a broca de lugar e seguir cavoucando. Foi quando chegou ao local, esbaforido, um funcionário da prefeitura. Após cinco telefonemas ignorados pelo jornalista, ele foi pessoalmente à praça, celular em punho, levar a palavra da maior autoridade do município. De Esteio, onde visitava a Expointer, o prefeito Abel Grave (PRB) ordenava o imediato encerramento da perfuração.
— Eu não sabia de nada. Daí começou uma enxurrada de ligações no meu telefone. As pessoas estavam reclamando da sujeira, do trânsito interrompido, live no Facebook transmitindo ao vivo. Eu disse ao Clóvis que parasse com aquilo, depois a gente marcava outro dia para furar — conta Abel.
— O prefeito estava exaltado, disse que eu não podia fazer aquilo sem autorização. Mas ele tinha concordado, só não tinha data certa. Eu disse que não poderia parar, ficaria mal com o povo, seria uma decepção. No fim acabei acatando a ordem dele. Mas a emoção falou mais alto e mandei fazer o segundo furo. "Depois eu me entendo com ele", pensei na hora — relata Clóvis.
O jornalista mirou então na segunda marcação no calçamento. Os "x" amarelos haviam sido grafados em janeiro pela geóloga Maria Luiza Rosa. Procurada por Clóvis no Departamento de Geodésia da UFRGS, Luiza esteve mais de uma vez em Ibirubá. Munida de georradares, ela e o colega Eduardo Barboza percorreram as ruas centrais em busca de eventuais descontinuidades no subsolo, típicas de túneis.
O relatório final do exame registrou "duas anomalias com geometria côncava" que "podem ter diversas origens". O diagnóstico foi inconclusivo e ressalvou que as feições não tinham continuidade e "suas dimensões extrapolam o que poderia ser esperado para túneis". Mas recomendava investigação direta. Ou seja, perfuração. Foi o que Clóvis fez.
Numa operação normal, levaria poucos minutos fazer o segundo furo. Mas nada era normal naquela tarde em Ibirubá. Como não havia restrição à circulação de pessoas, cada vez que a broca era erguida, os curiosos esticavam o pescoço para ver lá embaixo. O serviço já se estendia por meia hora quando ouviu-se um baque. A broca havia batido em algo.
Um voluntário suficientemente magro para passar pelo buraco desceu por uma escada, com a cintura atada a cordas, e gravou imagens com um celular. Em meio à terra, surgia uma estrutura rugosa e prateada. Houve um alvoroço coletivo e os especialistas presentes foram chamados a opinar.
— Não faço a menor ideia do que seja e não seria leviano de dizer que é alguma coisa sem antes fazer uma pesquisa arqueológica. Não descarto nada. Pode ser um bueiro, uma árvore fossilizada — esquivou-se André Soares.
— Era algo pequeno, talvez uma pedra. Se fosse túnel, seria de tijolos, mas parecia ser de concreto — afirma Pedro Bongiorno, que chefiou a unidade local da Corsan.
O fim da tarde se aproximava e Clóvis decidiu encerrar os trabalhos. Dias depois, disse ter sofrido ameaças veladas de alguém ligado a "pessoas poderosas", mas não revelou a identidade do algoz, tampouco denunciou o caso à polícia. O prefeito desdenha da suposta intimidação e quer escavar de novo no início de outubro.
— O brabo vai ser furar e não encontrar nada — admite.
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