SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) - Amarrado, amordaçado com um fio de náilon e com a calça abaixada, um homem grita sentado no chão ao longo de uma sessão de tortura. A vítima é colocada nas dependências de uma unidade do supermercado Extra, no Morumbi, bairro nobre da zona oeste de São Paulo.
Seus torturadores são seguranças de uma empresa terceirizada responsável por fazer a proteção de clientes, funcionários e dos produtos à venda nas gôndolas.
Tudo foi filmado e as cenas de violência que chocam pararam nas redes sociais.
Esta é a segunda denúncia de prática de tortura em menos de um mês registrada num supermercado da capital paulista. A primeira vítima, um adolescente de 17 anos, também foi amarrado, amordaçado, despido e chicoteado após tentar furtar barras de chocolate do supermercado Ricoy, em Vila Joaniza, na periferia da zona sul da capital.
Os agressores filmaram parte da sessão de tortura. Ameaçada por eles, a vítima não pôde ficar na casa de um de seus seis irmãos e foi abrigada num centro de proteção para crianças e adolescentes em vulnerabilidade social da prefeitura.
Os seguranças David de Oliveira Fernandes, 37, e Waldir Bispo, 49, são acusados na Justiça dos crimes de tortura, cárcere privado e divulgação de imagens de nudez.
Em fevereiro deste ano, um jovem negro foi morto numa filial do Extra no Rio após ser imobilizado por um segurança.
No novo caso de tortura registrado na loja do Extra, as imagens que circulam pelas redes sociais mostram a vítima sendo intimidada e obrigada a repetir frases enquanto é espancada. "Galera, não rouba mais no Extra Morumbi" e "Eu errei e me ferrei" são algumas delas.
Em todo instante, o agressor ordena: "Dá a mão". Com as palmas das mãos viradas para cima e estendidas na direção do agressor, o homem recebe choques e treme de dor.
Em outro momento, a vítima aparece com uma corda amarrada no pescoço e é espancada com o que parece ser um cabo de vassoura.
No cômodo onde a sessão de tortura é filmada aparecem o agressor e mais duas pessoas. Apenas um deles foi identificado e afastado das funções até o final das investigações realizadas pelo próprio Extra.
Não se sabe como as agressões terminaram e nem a identidade da vítima, cujo paradeiro também é desconhecido. A reportagem apurou que o homem foi torturado após ser pego tentando furtar um pedaço de carne do Extra. O caso teria ocorrido no início de 2018, mas as imagens só foram divulgadas agora.
A Polícia Civil instaurou inquérito na quinta (19). A tortura é um crime inafiançável, imprescritível e não pode ser perdoado nem mediante indulto pela Presidência da República.
Segundo Rogério Sottili, diretor do Instituto Vladimir Herzog, a tortura está ligada aos processos de fundação do Brasil.
"O país se fez nação com o extermínio de nações indígenas. Depois disso, passamos por duas ditaduras. Quando o governo não faz um processo de reparação e Justiça adequado, o que isso sinaliza? Que tudo pode. A violência passa então a ser uma tática naturalizada de poder."
Ariel de Castro Alves, advogado e conselheiro do Condepe (conselho estadual de direitos humanos), analisa que, se na ditadura militar (1964-1985), a tortura era um mecanismo usado por questão ideológica, hoje "é um instrumento contra pessoas pobres da periferia. É uma questão mais social".
Por isso, diz Alves, o número real de pessoas torturadas após envolvimento em pequenos furtos não está nas estatísticas oficiais.
"A subnotificação é grande nesses casos porque as próprias vítimas ficam com medo da denúncia. São pessoas em situação de rua, usuárias de drogas e que praticam pequenos furtos para comer ou trocar por droga", diz ele.
Para Alves, o problema precisa ser combatido com treinamento constante dos seguranças e fiscalização das empresas do ramo.
Supermercado diz investigar ocorrido e ter afastado agressor
OUTRO LADO
O Extra informou que soube dos fatos no dia 12 de setembro e que, imediatamente, iniciou uma apuração interna para investigar o ocorrido e tomar as providências necessárias.
"A rede lamenta profundamente que tal comportamento possa ter ocorrido em uma de suas unidades, uma vez que proíbe o uso de qualquer tipo de violência, por meio de suas políticas internas", disse.
O supermercado, parte do Grupo Pão de Açúcar, afirmou ainda que desligou o funcionário responsável pela área de prevenção da loja Morumbi e que afastou a empresa e os seguranças dela até a conclusão da investigação interna.
Acrescentou também que, independentemente do resultado da investigação, nada justifica um ato como esse e a empresa tem integral interesse na apuração dos fatos.
A empresa de segurança Comando G8, que fazia os trabalhos de segurança no Extra Morumbi, disse que registrou um boletim de ocorrência no dia 13 deste mês.
"A empresa não compactua com esse tipo de atitude e não aceitará esse comportamento de nenhum de seus 7.200 colaboradores, que passam constantemente por treinamentos, avaliações técnicas e psicológicas a cada 12 meses", segundo trecho de nota.
A Comando G8 ainda afirmou estar à disposição das autoridades para que o caso seja solucionado o mais breve possível.