Dois meses depois de exonerar todos os peritos do Mecanismo Nacional de Combate e Prevenção à Tortura (MNPCT), o governo Jair Bolsonaro retirou o apoio administrativo e limitou até o acesso às dependências do prédio aos membros do colegiado.
Em ofício assinado na sexta-feira (2), a secretaria de Proteção Global do Ministério de Direitos Humanos determinou que o acesso dos peritos seja controlado por meio de solicitação a cada entrada, tornou o uso de salas internas condicionado a agendamento prévio, retirou o acesso interno ao Sistema Eletrônico de Informação (SEI) por onde eram mantidas as atividades e redistribuiu os funcionários técnicos alocados no mecanismo.
— Eu estou aqui no trabalho, mas não sei se amanhã vou poder entrar no prédio — afirmou à reportagem o perito Luís Gustavo Magnata, que trabalha no órgão desde 2015.
Segundo o próprio comunicado, as medidas vêm na esteira do decreto editado por Bolsonaro em junho. No texto, o governo determinou que fosse retirada a remuneração dos peritos, que passariam a exercer a função como voluntários e não mais como funcionários públicos.
Na prática, diz Magnata, os peritos estão trabalhando sem receber há cerca de dois meses, e tentam reverter a determinação na Justiça.
— Alguns colegas que são de fora de Brasília já tiveram que voltar para seus Estados, porque a situação é insustentável — disse.
Outro perito ouvido pela reportagem confirmou a situação e disse que o ofício impõe uma perda de autonomia do colegiado.
O documento, assinado por Lucas Teixeira Grillo, chefe de gabinete da secretaria, afirma que "os peritos do mecanismo nacional, em respeito à condição jurídica de suas funções, são dignos de receber tratamento semelhante ao dos demais integrantes de Órgãos Colegiados ligados ao ministério, tais como presidentes dos conselhos e comitês".
Os peritos ouvidos, porém, dizem que o trabalho desenvolvido no colegiado é diferente daquele feito por conselhos ou comitês e necessita de dedicação exclusiva de seus membros e de apoio administrativo para elaborar relatórios e fazer vistorias em locais com denúncias de tortura.
O MNPCT foi criado em 2013 e faz estudos e relatórios sobre violações de direitos humanos no país. Foram eles, por exemplo, que elaboraram relatórios sobre a situação de presídios como o Complexo Penitenciário Anísio Jobim (Compaj), no Amazonas, onde 111 presos foram mortos em massacres de 2017 a 2019.
Ele foi instituído para cumprir um compromisso internacional assumido pelo Brasil na Organização das Nações Unidas (ONU). Em fevereiro, os peritos já tinham acusado o ministério comandado por Damares Alves de impedir uma viagem para apurar denúncias no Ceará.
Desta vez, em carta aberta, o grupo diz que "a autonomia e independência de trabalho ficam concretamente inviabilizadas".
"Este Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura vem a público externar seu mais absoluto repudio à interferência direta do governo federal e o desmonte vivenciado na política nacional de prevenção e combate à tortura, e clama para que todos possam fazer coro para impedir o vilipêndio e sucateamento das atividades do estado brasileiro que visam a investigar e responsabilizá-lo pelos crimes de tortura cometidos no passado e no presente", diz o texto.
Outro lado
Questionado, o Ministério de Direitos Humanos nega que tenha deixado de prestar apoio financeiro. Em nota, a pasta afirma que, apesar de terem sido exonerados, os integrantes do grupo mantêm a "condição de peritos nacionais, de forma que a autonomia funcional legalmente assegurada a estes será preservada e respeitada".
"A única mudança diz respeito à estruturação, que agora terá funcionamento semelhante aos dos demais integrantes de conselhos, comissões e outros órgãos colegiados vinculados ao MMFDH. Tal medida, feita com enfoque na economicidade, dispensa a necessidade de estrutura física e escritórios fixos", diz a nota.
"Por fim, qualquer afirmação de que o MNPCT sofreu interferência do governo federal em seus trabalhos não procede. Na verdade, é franqueado aos peritos do Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura o acesso às dependências e a utilização da estrutura física do MMFDH, mediante consulta e agendamento."