Com uma inflação que superou 1.000.000% em 12 meses, aliada ao desemprego crescente, a crise na Venezuela cria em Roraima uma disputa acirrada por trabalhos que exigem pouca ou nenhuma qualificação formal. Próximo ao abrigo Santa Tereza, em Boa Vista, as reclamações são de ambos os lados.
— Emprego diminuiu muito. Porque eles trabalham baratinho, e tem muitos na rua — reclama Patrícia Vieira, de 22 anos, que carrega a sobrinha de 3 anos pelo braço. A mãe da menina faz bicos em qualquer atividade para sustentar a filha.
A crise no país vizinho tem aumentado consideravelmente a população de Roraima, atualmente estimada em 576 mil pessoas, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Todo dia, o Estado ganha cerca de 500 novos habitantes.
Escorado em uma cerca de madeira, usando uma mesa de plástico e um fogão dois bicos, a família Lanz frita pastéis com massa à base de milho. A faixa presa por um prego em uma ponta e uma fita isolante que se desprende no outro anuncia a promoção: um pastel e um suco por R$ 1,00. Jesus Lanz, 31 anos, fechou os dois restaurantes da família na Venezuela após o avanço da crise.
— A gente tinha casa, carro, tudo. Mas agora não tem mais como comprar nem comida. É um mês de trabalho para comprar um frango, ou um quilo de carne e de mortadela.
A esposa, Desirré, sente falta dos seus alunos da pré-escola.
— Eu dava aula para crianças de 3 a 6 anos. É a idade dos meus filhos, e o que mexe comigo. Mas agora nem adianta, como eu saí estou banida pelo governo.
O casal vive com a mãe de Jesus e os dois filhos em uma casa de um dormitório. O aluguel é de R$ 350 mensais.
A pastelaria improvisada fica ao lado da Casa do Forro, empresa criada por uma família gaúcha e que trabalha exclusivamente com revestimentos residenciais. O proprietário, Flávio Gauger, trabalha com o pai e o filho. Ele se diz favorável à ajuda aos venezuelanos, mas reclama da venda de pastéis.
— Ele (Jesus) acha que não gostamos deles. Não é isso. Eu alertei que é proibido fazer comércio na calçada, até pra polícia não tirar o botijão e as coisas dele — justifica.
Nessa briga, o migrante é taxativo:
— Os brasileiros acham que somos uma praga.
Na oficina Barroso, as mãos sujas de graxa não distinguem nacionalidade. Roberto Rivelino, 47 anos, faz piadas com o já amigo Wolfgang Enrique Lugo Campos, e ri quando o venezuelano puxa a carteira para ensinar como escreve seu nome.
— Os que trabalham aqui me tratam bem, mas de resto não. Muita discriminação. Outro dia estava caminhando na rua e uma mulher me jogou uma pedra. Eu só estava caminhando na rua — relata gesticulando o venezuelano, prestes a completar 40 anos.
Ele vive na rua, com a esposa, em uma tenda de lona distante algumas quadras de onde trabalha. A diária da tenda gira em torno de R$ 50, segundo o gerente do local, Roni Barroso. Os dois filhos, de 4 e 16 anos, ficaram em Kumakan, no Estado do Sucre.
— Vou a Pacaraima na quarta-feira (19) para mandar comida para a família.
Wolfgang e a esposa conseguiram juntar 15kg de arroz, 15 latas de óleo de soja, 10kg de farinha de trigo, açúcar, refrigerantes e leite ninho. Gastaram cerca de R$ 300 na compra e vão pagar mais R$ 200 para o envio dos alimentos de ônibus.