O Tribunal de Justiça (TJ) gaúcho manteve, na tarde desta sexta-feira (2), a decisão de que os réus do processo principal da tragédia da boate Kiss não serão julgados pelo Tribunal do Júri.
Em sessão que durou apenas 15 minutos, o 1º Grupo Criminal negou por unanimidade o recurso apresentado pelo Ministério Público (MP), que tentava reverter resultado de dezembro.
Com placar de 5 a 0, a votação beneficiou os ex-donos da Kiss, Elissandro Spohr e Mauro Hoffmann, e os músicos do grupo Gurizada Fandangueira Luciano Bonilha Leão e Marcelo de Jesus dos Santos, pois manteve o afastamento de dolo eventual para a morte das 242 vítimas da Kiss.
Os réus só seriam submetidos ao Tribunal do Júri caso fossem julgados por homicídio doloso ou com dolo eventual — quando, mesmo sem intenção, assume-se o risco de matar. Com a decisão, eles devem ser julgados por outro crime, como homicídio culposo e incêndio, por um juiz criminal de Santa Maria.
O resultado do julgamento desta tarde já era esperado por familiares das vítimas, que acompanharam a sessão da plateia da sala 715, pelo seu advogado Ricardo Breier e pelo próprio MP, já que os embargos de declaração – recurso utilizado pela procuradoria de Justiça – dificilmente podem modificar uma decisão.
No entanto, o MP argumentava que o empate em 4 a 4 no julgamento anterior colocava dúvidas no processo quanto à existência de dolo e que, por isso, o caso poderia ser resolvido em favor da coletividade, citando o Código de Processo Penal (CPP), e remetendo a decisão ao júri.
Bate-boca marcou julgamento
Primeiro a votar, o relator, desembargador Victor Luiz Barcellos Lima, voltou a defender que o regimento interno do TJ determina que o empate deve sempre beneficiar o réu, que nesse caso são os ex-donos da Kiss e os músicos.
Presidente da sessão, o desembargador Sylvio Baptista Neto votou com o relator e explicou que, quando o julgamento chega ao embargo, a decisão já esta tomada e as discussões já se esgotaram. Ao rebater os argumentos do recurso, no entanto, ele questionou a atitude do MP e elevou o clima da sessão.
— Nunca se examinou tanto os fatos em um processo. Falar em omissão, desculpe Ministério Público, é uma grosseria com o Colegiado — afirmou Babtista Neto.
O procurador de Justiça Silvio Munhoz, que estava sentado ao lado de Neto, interrompeu a fala:
— Chamou de grosseria um recurso que é um direito — rebateu Munhoz, pedindo para que isso constasse em ata.
A votação prosseguiu, com os outros três desembargadores negando o recurso. Honório Gonçalves da Silva Neto, em sua explanação, também criticou o MP.
— Empate não é dúvida. Quatro desembargadores disseram que não houve dolo e quatro que sim (no julgamento de dezembro). Ninguém teve dúvida do seu voto. É uma ofensa pessoal colocarem o empate como dúvida. Parece que, como tem repercussão (no caso da Kiss), o MP tem que ter recurso.
O procurador novamente rebateu o desembargador. Do outro lado da sala, o relator também voltou a falar:
— O senhor, por favor, se cale. Cale-se que eu estou falando — disse Lima.
Da plateia, vieram palmas para a atitude do procurador. Flávio Silva, pai de Andrielle Silva, uma das vítimas, levantou-se e convocou os demais familiares a deixarem o local.
— Este é o retrato da nossa Justiça. É vergonhoso — disse Silva, que é o atual vice-presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), sendo seguido pelos demais.
Antes de terminar o julgamento do recurso, Lima disse que o MP "está operando de má-fé", e o procurador voltou a dizer que o recurso era um direito. Depois, os magistrados seguiram analisando outros processos.
Do lado de fora da sala 715, familiares indignados seguraram cartazes e deram entrevistas inflamadas. O advogado Ricardo Breier, que é o presidente da seccional gaúcha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB-RS), explicou que o empate em 4 a 4 é algo inédito e voltou a dizer que ele gera, sim, dúvidas no processo da Kiss.
Por isso, vai ajudar o MP a recorrer da decisão ao Superior Tribunal de Justiça (STJ), por meio de um recurso especial, e, paralelamente, ao Supremo Tribunal Federal (STF), com um recurso extraordinário.
— Tenho certeza de que vamos reverter a decisão nas outras instâncias o problema e que vamos ter que esperar mais um, dois anos para isso. Enquanto isso, essas famílias vão continuar sangrando — disse Breier, apontando para os pais das vítimas.
Sérgio Silva, pai de Augusto, que também morreu na tragédia, e atual presidente da AVTSM, se disse indignado com o "aval à impunidade" dado pelo TJ e afirmou que os familiares seguirão pressionando por justiça, inclusive recorrendo ao STJ e ao STF.
— Não vamos abrir mão de pedir justiça, por mais que ela tarde ou mesmo que não dê em nada — afirmou Silva.
O caso
— Em 27 de julho de 2016, o juiz Ulysses Fonseca Louzada, da 1ª Vara Criminal de Santa Maria, decidiu que os quatro réus do processo criminal do caso da boate Kiss iriam a júri. A defesa dos réus recorreu da decisão.
— No julgamento do recurso, em 22 de março de 2017, a 1ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Estado (TJ) decidiu, por dois votos a um, que os quatro réus do processo deveriam ir a júri. Os advogados de defesa recorreram novamente ao TJ por meio de embargos infringentes, já que a decisão do colegiado não foi unânime.
— Em 1º de dezembro de 2017, o 1º Grupo Criminal do TJ acatou o pedido das defesas dos réus e decidiu que os acusados não serão julgados pelo Tribunal do Júri, mas, sim, por um juiz criminal de Santa Maria. O placar terminou empatado, 4 a 4, o que acabou beneficiando os réus, pois o dolo eventual (quando se assume o risco) foi afastado.
— Nesta sexta-feira, a partir das 14h, o 1º Grupo Criminal julgou os embargos de declaração movidos pelo Ministério Público Estadual contra a decisão que afastou a possibilidade de júri popular contra os réus.