Chefe do escritório central da Interpol no Brasil, o delegado federal Valdecy Urquiza Jr. alerta para um mundo novo que já é realidade no cotidiano. Os crimes virtuais fazem milhões de vítimas ao redor do planeta. E os danos não são apenas financeiros. Roubo e criptografia de informações e exposição de intimidades estão levando empresas à bancarrota e jovens ao suicídio.
A polícia avançou em investigação dos delitos de larga escala, como mostra a Operação Lava-Jato, mas, no meio digital, o crime parece estar passos adiante. Por que?
A quantidade de crimes cibernéticos cresceu bastante no mundo todo, impulsionada por uma série de fatores, mas principalmente pelo fato de que cada vez mais as transações da vida das pessoas e das empresas estão baseadas em soluções digitais. Os grupos criminosos passaram a ver uma possibilidade de auferir lucro. Isso faz com que as polícias precisem repensar a sua forma de investigar. O delito cibernético, da forma que se apresenta hoje, exige um preparo e uso de ferramentas tecnológicas que as polícias precisam dominar para dar uma resposta adequada. É uma questão global. A Interpol deu uma grande contribuição recente quando criou, em 2015, o complexo global de inovação tecnológica em Cingapura. Esse complexo, que contou com ajuda relevante da Polícia Federal na sua instalação, tem como missão reunir polícias do mundo todo, juntamente com empresas de tecnologia e estudantes e professores do mundo acadêmico. O objetivo é desenvolver soluções, ferramentas e conhecimentos que possam ser utilizados na investigação criminal. Algumas ferramentas lá desenvolvidas já são utilizadas aqui no Brasil pela PF. A grande dificuldade de investigar delitos com moedas digitais é que o anonimato é muito maior. O trabalho da Interpol em Cingapura tenta ajudar nesse ponto, identificar os proprietários de cada uma dessas carteiras de moeda digital. Estamos diante de um momento de mudança significativa nas polícias no que se refere à investigação criminal. Há uma mudança da criminalidade. Já tivemos algumas ações no mundo em que um pequeno grupo, em uma única ação, fez mais de 100 milhões de vítimas em um delito digital.
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A sociedade debate muito os crimes que acontecem nas ruas, que trazem o risco físico, mas a tendência é de que as pessoas passem a ser cada vez mais vítimas de ataques cibernéticos?
Com certeza. Temos duas situações. A primeira é o crescimento exponencial dos delitos puramente cibernéticos. E o segundo dado é a utilização de ferramentas tecnológicas para a prática de crimes convencionais, os tradicionais. Um exemplo recente disso foi um sequestro que ocorreu em Florianópolis e o resgate foi exigido em moeda virtual. Hoje, mesmo quando deparamos com crimes tradicionais, há uma necessidade de domínio das ferramentas de investigação dos crimes digitais para solucionar o delito. A quantidade de informações que temos armazenadas em meio digital é cada vez maior. E o impacto na vida das pessoas será cada vez maior. Já tivemos no Brasil vários casos de crime na modalidade ransomware, que é o sequestro de dados no qual todas as informações de uma empresa são criptografadas e é cobrado o resgate. A gente começa a ver a possibilidade até mesmo de uma empresa ter de encerrar suas atividades por não recuperar os dados. Nesses casos, o objetivo é financeiro, mas nada impede que a mesma metodologia seja utilizada com o objetivo de tirar uma empresa de operação.
A motivação dos crimes cibernéticos, em maioria, é econômica. Mas podem existir ataques a sistemas como meio de ação ideológica para prejudicar instituições ou governos?
O ganho financeiro é o principal viés, mas não é só isso. Há diversos outros interesses por trás. Uma modalidade cada vez mais comum é a extorsão sexual, no qual a pessoa sofre uma série de ameaças, em geral adolescentes. Por que esse é um fato relevante? Diversos casos, em vários países, têm terminado em suicídio da vítima. A metodologia desse delito é basicamente um trabalho de engenharia social no qual o criminoso desenvolve um relacionamento com a vítima, que acredita estar tratando com uma pessoa legítima. Em algum momento, ao ganhar intimidade, passa a compartilhar fotos íntimas. Depois, isso é utilizado para que a vítima forneça mais material ou pratique algum ato sexual. Isso tem levado vários adolescentes a uma situação de desespero em que acabam praticando suicídios.
Muito se comenta que as guerras do mundo irão se transferir dos campos de batalha para o ambiente virtual, com roubo de informações, dados, interceptações, ataques. Isso é real?
Já temos unidades especializadas dos exércitos denominadas guerra digital. A gente fala muito em futuro, mas esse futuro tecnológico já chegou. Existem dispositivos implantados no ser humano que podem ser alvo de ataque cibernético. É o caso do marca-passo, que pode ser acessado pela internet para manutenção e verificação de bateria e de falhas. Tem uma notícia de hoje (sexta, 1º de setembro) informando que uma empresa fabricante de marca-passo acusou que precisa analisar e possivelmente fazer recall de quase meio milhão de marca-passos devido a uma falha que pode levar a acessos indevidos. A partir do momento que você tem acesso a um dispositivo como esse, pode controlar a duração e a quantidade de descarga elétrica que vai ser dada no equipamento. E você pode causar, no mundo real, a morte de uma pessoa. Isso é uma realidade estudada e, em alguns casos, utilizada por criminosos.
Como a Interpol auxilia no combate ao terrorismo?
A Interpol não preside investigações. Ela possui diversos bancos de dados. Esse é o grande papel e ajuda que a Interpol dá. Um dos bancos de dados é o de pessoas com envolvimento com algum tipo de atividade terrorista. É o Foreign Terrorist Fighters. Pega as pessoas que se envolveram com algum grupo. Esse tipo de informação a Interpol concentra e armazena para ajudar os países nas investigações. Ela pode fazer o cruzamento com listas de passageiros, por exemplo. O nosso trabalho é mais esse, de banco de dados e cruzamentos, enquanto a investigação fica por conta das unidades especializadas.
Há brasileiros no Foreign Terrorist Fighters?
Todos os países podem alimentar e consultar o banco. Hoje temos mais de três mil alvos cadastrados no mundo inteiro. A nacionalidade e quem pediu a inclusão são dados resguardados. Além disso, a Interpol tem outros instrumentos que podem ser utilizados nessa matéria, como a difusão verde, utilizada para pessoas que já cometeram crimes e podem voltar a cometer. A difusão vermelha é usada nos casos de pessoas efetivamente procuradas, com ordem de prisão contra elas. Só aí são mais de 50 mil registros no mundo todo. Apesar de estar cadastrada no banco, a informação é de propriedade do país que pediu a inclusão. Por isso, são informações resguardadas por sigilo.