Uma golfada de vento gelado é jogada no rosto quando a porta de metal branca é empurrada para trás. É difícil identificar o cheiro: umidade, mofo, aquele odor de um lugar mantido fechado há tempo. A escuridão é quase total.
O prédio da Kiss continua uma caixa selada, cujo breu só é quebrado por frestas na estrutura: uma no teto à direita de quem entra, onde ficavam as bilheterias. Ali, o gesso desabou parcialmente. Nos fundos, onde funcionava o pub, o teto de zinco levou marretadas dos bombeiros naquela fatídica madrugada de 27 de janeiro de 2013, mas não se rompeu. Há também um buraco de três palmos na parede próxima ao palco.
Leia mais:
Janot abre processo para avaliar retirada do Caso Kiss da Justiça gaúcha
Instituto dos Arquitetos explica como será a escolha do projeto para memorial da Kiss
Prefeitura de Santa Maria vai pagar mais de R$ 1,3 milhão para desapropriação de prédio da Kiss
A visita na última segunda-feira é a 10ª vez que Flávio Silva, pai de Andrielle, 22 anos, uma das vítimas, entra na Kiss. É também uma das últimas – o prédio deve ser demolido.
– Minha entrada aqui nunca foi para tentar alguma espécie de comunicação ou ouvir algum sinal da minha filha. É simplesmente para saber em que condições os jovens estavam. Tinha necessidade de saber se tiveram chances de sair com vida. Porque isso aqui, um dia, vai ter de ser explicado – diz Flávio.
Guardião da história entre os escombros
Desde que o imóvel foi desapropriado da empresa Econn Empreendimentos de Turismo e Hotelaria, em junho, ao custo de R$ 1,3 milhão a ser pago pela prefeitura de Santa Maria em 12 parcelas, Flávio tornou-se uma espécie de guardião da Kiss. Como vice-presidente da Associação dos Familiares de Vítimas e Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM), detém a chave.
Passou a conhecer cada setor. Com o auxílio de uma lanterna, reexamina os gradis e guarda-corpos que dificultaram a saída das vítimas. Revisa o banheiro feminino, onde uma janela concretada chegou a ser uma esperança vã de fuga. Engendra-se pelos camarins, intricada área de saletas que compõem arapuca de difícil acesso – e de impossível saída em meio ao caos de um incêndio. Detém-se perto ao palco, onde tudo começou às 3h17min daquela madrugada.
– Foi mais ou menos no centro, um pouco a nossa direita. Aqui ó. Em cima do palco. Aquela imagem do rapaz com o extintor de incêndio tentando apagar o fogo, e não funcionou – lembra.
Quase não se ouve os carros lá fora, na movimentada Rua dos Andradas.
– Sinto que aqui é um lugar de paz. Apesar de ter acontecido tudo o que aconteceu – afirma Flávio.
Experiente ao tatear a boate na escuridão, ele ainda se surpreende às vezes. Por trás da copa, os olhos do pai descobrem o que parecia ser uma janela.
– Uma basculante, que poderia ter servido como fuga? – reflete antes de perceber que trata-se de um espelho. Em outro ponto, sobre uma mesa coberta pela poeira, um adesivo ainda marca reserva com a inscrição "Thais".
Demolição do prédio começa em 15 de setembro
– A gente não vê a hora de que isso aqui seja colocado abaixo, será o sinal de que outra coisa vai ser construída, outro tom, outro visual. Mas, ao mesmo tempo, fico com coração partido (com a demolição), porque isso aqui faz parte da nossa história de vida – afirma o pai.
A demolição da Kiss começa a partir de 15 de setembro. Será manual e com uso de máquinas, conforme a prefeitura, e deve levar pelo menos 30 dias.
A implosão é inviável porque as paredes são geminadas a prédios vizinhos.
O processo começa em 21 de agosto, com o lançamento de plataforma na internet para arrecadar recursos, por meio de crowdfunding (vaquinha online), para a realização de concurso público do projeto do memorial a ser erguido no local.
Segundo o Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB), que organizará o concurso, são necessários R$ 150 mil (o ideal seriam R$ 250 mil), divididos em premiações aos primeiros colocados e outras tarefas (leia entrevista na página ao lado). Cada escritório deve apresentar um estudo preliminar de projeto arquitetônico e paisagístico. Uma comissão julgadora composta por arquitetos do IAB, pais e prefeitura irá escolher o vencedor, com anúncio até 15 de dezembro. Pelo cronograma sugerido pelo instituto, a inauguração do memorial está prevista para dezembro de 2019.
Leia também
Defesa de pais de vítimas da Kiss não aceita pedido do MP para absolvição
MP protocola pedidos de absolvição de pais de vítimas da Kiss
Tribunal julga recurso de pais de vítimas da boate Kiss contra ação movida por promotor de Justiça
Nos dias 1º e 2 de setembro, o IAB fará em Santa Maria um seminário para apresentar aos pais modelos de memoriais pelo mundo: como o do 11 de Setembro, em Nova York, e o santuário em homenagem aos 194 jovens que morreram no incêndio na boate República Cromañón, em Buenos Aires, em 30 de dezembro de 2004. O prefeito, Jorge Pozzobom (PSDB), promete que até o quinto aniversário da tragédia, em 27 de janeiro de 2018, o local estará limpo. A ideia é que, após a demolição da Kiss, seja plantada grama, e as paredes ao redor, pintadas de branco.
– Depois de escolhido o projeto, vou me atracar no telefone em busca de parcerias para financiar a obra do memorial – afirma Pozzobom.
Cada pai, amigo, autoridade em Santa Maria tem uma ideia diferente para o local de homenagens. Por isso, o processo de escolha não será simples. Presidente da AVTSM e pai de Augusto,
20 anos, Sérgio Silva gostaria que não fosse apenas uma praça. Ele teme que, com o tempo, a área facilite a ação de vândalos e consumo de drogas ou, pior, seja esquecida pela comunidade.
– Imaginamos um local com função social. Quem sabe um prédio para atender adolescentes, com ginecologia, auxílio psicológico, centro de referência? E uma placa com os nomes ou as fotos dos jovens vítimas. Mas tem de ser algo que faça girar pessoas por ali – sugere.
O teto rebaixado, onde ficava a espuma tóxica, foi removido, elevando em cerca de um metro o pé direito da boate e aumentando o aspecto tétrico do prédio. Bem diferente do que Flávio imagina para o futuro:
– As pessoas tinham a ideia de que vamos construir um mausoléu pra lembrar aquela desgraça. Não! A gente não quer um memorial só para lembrar a morte de nossos filhos. Queremos que sintam uma transformação para vida.