Por desconhecer a ação da prefeitura de Caxias do Sul em relação aos imóveis públicos cedidos a terceiro, o auditor público externo do Tribunal de Contas do Estado (TCE), Valtuir Pereira Nunes, prefere não avaliar a situação na cidade. Contudo, reforça que é dever dos municípios informar publicamente quais os imóveis e outros bens que possui e deixar os dados acessíveis ao público. Para ele, isso se chama transparência, o que permite um maior controle do patrimônio público por parte da população. Por outro lado, Nunes lembra que a cessão de terrenos também pode ser útil para um município com muitos espaços ociosos, desde que a finalidade tenha enquadramento na lei.
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Pioneiro: Muitos imóveis estão ocupados por terceiros e a prefeitura não tem controle disso. O que uma cidade como Caxias perde com isso?
Valtuir Pereira Nunes: Para que alguém particular possa utilizar um patrimônio público, é preciso de uma autorização legislativa de uso. Isso vale para prédios e também terrenos, como é o caso de terras devolutas, que são terras públicas que eventualmente são ocupadas pela comunidade. No caso do município, o mínimo de organização aceitável é que ele tenha um registro dos imóveis que eles possuem. Na Secretaria de Habitação, deve haver um cadastro com base nos registros feitos em cartórios, sabendo qual o patrimônio que lhe pertence. A prefeitura precisa saber disso em primeiro lugar, pois alguns imóveis estão alugados ou até para instalar algum serviço público, que poderia ser adaptado com alguma obra ou reforma sem a necessidade de locar outro espaço. A prefeitura que não tem o controle do seu próprio patrimônio ou desconhece o que lhe pertence, pode estar gastando recursos sem necessidade.
E quando alguém constrói sob um terreno público?
Se for numa situação irregular, essa pessoa precisa desocupar o imóvel.
A cessão de imóveis, por meio de decreto, é legal?
Exatamente. Vamos imaginar que isso pode acontecer, e agora mais com as parcerias feitas com entidades do terceiro setor (asilos e associações). Bom, isso não é incomum porque, por exemplo, um asilo que é mantido através de convênio com a prefeitura, é legal que seja utilizado um prédio do próprio município. Mas, para tanto, precisa ter uma autorização legislativa para isso, que é uma cessão de uso, para fins de desenvolvimento de uma política pública. Aquele imóvel não é da entidade, ela fica usufruindo daquele patrimônio enquanto vigora o convênio, hoje chamado de termo de colaboração, e quando acaba o contrato é preciso desocupar o lugar para que outra entidade utilize ou para que a prefeitura destine outro serviço para o lugar. Não raras vezes, há doação de patrimônio público para uma indústria que vai se instalar no município. Normalmente, esses terrenos de áreas industriais que eles criam, os distritos, que podem ser áreas privadas, e a prefeitura vai lá, desapropria a área, indeniza o proprietário, e esse espaço se torna um patrimônio público. Mediante lei, o município pode fazer uma cessão de uso ou uma doação do terreno, para que a empresa se instale naquele local. Qual é a contrapartida? Que a empresa gere empregos, gere receita futura, eventualmente, tem a isenção de IPTU.
Se essa empresa tem lucro sobre uma área pública, isso é ilegal?
Não, até porque o cálculo econômico que se faz em relação a isso é feito com um raciocínio: aquele terreno está desocupado, então, ele não gera lucro para o poder público, já que está parado. Aí, o que ele faz? O poder público doa para uma indústria que vai se instalar, vai gerar empregos, o que melhora a geração de renda local, vai aumentar a arrecadação de ICMS e vai gerar receitas futuras, que é o crescimento de economia. É preciso monitorar qual o prazo vai ser dado para a isenção de IPTU para essa entidade, por exemplo, porque não deve ser assim para sempre. Não vai existir uma isenção perpétua. Esse período que se dá, de 10,15 ou 20 anos, é um cálculo que é para compensar o investimento que essa empresa está fazendo para se instalar no município.
Pode haver alguma irregularidade num terreno público que foi cedido para uma associação esportiva e essa entidade limita o acesso do público mediante pagamento de aluguel?
Quando foi assinada a cessão de uso, deve ter especificado o que vai se fazer naquele espaço. E pode, inclusive, ter atividade lucrativa lá. Se, por exemplo, eu cedi uma área para a associação esportiva, para a criação de um campo de futebol utilizado na recuperação de crianças, e eles fazem jogos e cobram ingressos, não há problema com isso. Bom, se eles pegam o terreno que era para isso e resolvem fazer um palco para shows de bandas e cobram ingressos, aí mudaram a destinação do imóvel e daí tem que devolver sim.
Tem o caso de uma cooperativa de postos de combustíveis sobre terreno público em Caxias.
Não há nenhum problema quanto a isso, porque a natureza jurídica pode ser ampliada. A ideia era apenas abastecer os cooperados, mas, já que cresceu o movimento, e até para ter sustentabilidade, ela pode ampliar o atendimento. Mas, claro, é preciso analisar um caso concreto para afirmar se há ou não irregularidade. O que não pode mudar é a natureza. Isso é muito simples de perceber como, por exemplo, numa locação: tu alugas um apartamento, tem aluguel comercial e residencial. Bom, daí eu alugo um apartamento para morar por R$ 1 mil. Normalmente, o aluguel comercial é mais caro, porque a pessoa vai ter uma atividade econômica, vai ter mais renda e vale mais aquela locação. Aí eu estou morando lá e resolvo abrir uma empresa, mudando a natureza jurídica. Esse exemplo que eu dei, só para adaptar, no caso de uma cessão de uso, ela tem que obedecer aos critérios da lei que autorizou e do termo de doação ou cessão de uso. Há situações de autorização que cedem o terreno para a entidade instalar uma fábrica de calçados e dá um prazo. E, essa entidade passou o prazo, não construiu e o que aconteceu? O contrato é cancelado e ela tem que devolver o imóvel.
O que pode gerar dúvida é o suposto benefício de uma determinada entidade.
Pode, isso pode gerar. Por essa razão é que existe lei. A Câmara é o representante da sociedade e pode achar que o benefício não está bem justificado. Nada impede que, mesmo tendo lei, a sociedade local, imaginando que exista o beneficiamento indevido, que seja questionado isso através de canais competentes como, por exemplo, no Ministério Público, para o Tribunal de Contas. Por isso que existe a transparência, a veiculação das informações. O Tribunal está exigindo que, além daquelas informações comuns, que se tenha um link (no site da prefeitura) com a relação dos imóveis e dos automóveis. O que nós queremos com isso? Queremos que a prefeitura indique qual é a sua frota e, ao indicar isso, fazer com que a sociedade tenha conhecimento do que é público. Daqui a pouco, aquele veículo que está estacionado no supermercado fazendo compras para uso particular, ele está em uso indevido. Nem todo veículo tem a indicação de que é da prefeitura. Então, isso serve para aumentar o controle social. Fazendo isso com os imóveis também, a sociedade vai poder olhar no cadastro e saber exatamente qual o imóvel, o endereço e a destinação. Aí, o cidadão entra no portal da transparência e vê que o imóvel em frente a sua casa e que está desmoronando é da prefeitura. Ele pode, então, questionar o que o município pretende fazer com aquela área. Então, fazer um controle sobre os seus imóveis não é somente para a administração conhecer, mas mais do que isso, para dar transparência e para a comunidade saber e fiscalizar. Por exemplo, a prefeitura diz que não tem como construir um asilo, mas tem aquele imóvel vazio. Ou também, alega falta de recursos financeiros, sendo que poderia vender, colocar em leilão os imóveis desocupados.
A prefeitura pode leiloar quando não está usando?
O que ocorre é o seguinte: quando a prefeitura faz o zoneamento urbano, ela cria com base no plano diretor, com base em leis, ela vai lá e regulariza uma determinada área, faz o mapeamento, faz ruas, faz esgoto, iluminação pública, água e cria um loteamento. Isso pode ser feito pela própria administração, o que é mais incomum, ou por empresas incorporadoras, que pega uma área e entra com um processo na Secretaria de Obras pedindo autorização para a criação de um loteamento. Existem regras para isso. Feita essa autorização, a empresa privada faz as ruas e o município autoriza criar matrículas individuais, desmembrar esse terreno. E ele começa a comercializar. As áreas em que têm terrenos são de propriedade da entidade. Agora, o arruamento é do poder público.
Mas teria condições de leiloar sobras de terrenos?
Na verdade, se aquele imóvel tem proprietário, a prefeitura não pode fazer isso. O que a prefeitura pode fazer é desapropriar. O que acontece em alguns casos de ocupações irregulares é que não há mais como remover aquela comunidade e o Estado é obrigado a regularizar, que chamamos de regularização fundiária. A prefeitura não pode ir lá e despejar as pessoas, tem que indenizar. O tempo acaba consolidando a posse em decorrência do uso.
Existe um prazo para a disponibilização dos dados na transparência?
Não. O Tribunal tem alertado para a regularização do cadastro de bens públicos e tem apontado quando não ocorre o atendimento deste requisito.
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Adriano Duarte
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