A divulgação de conversas de um jornalista com um alvo das investigações iniciadas a partir das delações dos proprietários da JBS acrescentou nova polêmica à controversa condução do inquérito. Ao retirar o sigilo das colaborações, o Supremo Tribunal Federal (STF) acabou liberando milhares de ligações sem qualquer relação com os crimes apurados – entre as quais, o diálogo entre Reinaldo Azevedo, então colunista da revista Veja, e Andrea Neves, irmã do senador afastado Aécio Neves (PSDB-MG).
De imediato, a publicação dos telefonemas provocou efeitos. Reinaldo pediu demissão da revista, e as instituições envolvidas na investigação deram início a um jogo de empurra sem que ninguém assumisse a responsabilidade pelo equívoco. O motivo e a origem da divulgação das conversas ainda não estão claros, mas, entre especialistas, há consenso: Polícia Federal (PF), Procuradoria-Geral da República (PGR) e STF falharam.
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– Foi uma quebra de sigilo a atacado e uma sucessão de falta de checagem. Teria de ocorrer uma conferência prévia em todas as esferas. Ou seja, existe falha da polícia, que não apontou quem havia sido gravado, do Ministério Público, que também não olhou, e, em última instância, do Supremo, que não verificou e nem descartou o diálogo – avalia Luciano Godoy, professor da Escola de Direito da Fundação Getulio Vargas em São Paulo (FGV-SP).
Quebra de sigilo da fonte esquentou debate
Presa na semana passada, Andrea estava sendo monitorada pela PF. Mas, segundo manda a lei, os grampos sem relevância para o inquérito deveriam ser descartados e nem sequer constarem no processo. Para Plínio Melgaré, professor de Direito Constitucional na PUCRS, era o que deveria ter acontecido na gravação que envolvia Reinaldo.
– Essas conversas, sem relação com o fato investigado, devem ser afastadas do próprio inquérito e sequer serem transcritas no processo. Esses áudios precisavam ser destruídos, ainda mais quando existe o sigilo da fonte envolvido. É preciso que haja um filtro entre o que será publicizado e o que será excluído – observa.
Entidades de imprensa e até mesmo ministros do STF avaliaram que o episódio feriu o princípio do sigilo da fonte, previsto na Constituição e assegurado a todo jornalista. Tratando-se de qualquer outro cidadão, a divulgação também seria um erro – atentaria contra o direito à privacidade. E a rejeição à divulgação dos áudios se soma a outras críticas quanto à condução das apurações resultantes da delação da JBS, como inexistência de perícia prévia na gravação de Temer por Joesley e a extensão dos benefícios concedidos aos delatores (leia ao lado).
O criminalista e professor da Unisinos Carlos Eduardo Scheid compara o caso à divulgação da gravação de diálogo entre os ex-presidentes Luiz Inácio Lula da Silva e Dilma Rousseff, ocorrido em março do ano passado. Na avaliação de Scheid, os episódios sintetizam excessos cometidos no decorrer da Lava-Jato.
– Como não houve censura alguma àquele episódio, infelizmente chegamos ao ponto de vivenciar o vazamento de uma gravação entre um jornalista e uma investigada. Essa não é uma situação estanque, somente o desdobramento de outras situações que foram se tornando corriqueiras socialmente, mas juridicamente equivocadas – critica.
Após a sucessão de críticas, o relator da Lava-Jato no STF, Edson Fachin, colocou as interceptações telefônicas novamente sob sigilo. O estrago já estava feito.
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Benefícios e falta de perícia criticados
Mesmo antes da liberação da conversa entre Reinaldo Azevedo e Andrea Neves, a investigação implicada pela delação da JBS já vinha carregada de controvérsias. Polêmicas que desviaram o foco do conteúdo das colaborações e acabaram incorporadas à defesa de Michel Temer.
Entre as discussões, a possível edição no áudio gravado por Joesley e o presidente. Diante da batalha de versões, críticos indicaram que a Procuradoria-Geral da República (PGR) deveria ter encaminhado o arquivo para perícia para atestar a sua autenticidade antes de incorporá-lo como prova.
– Justamente para evitar a polêmica, como uma medida de resguardo, me parece que a perícia teria de ter sido feita. Em uma situação de tamanha gravidade, cria-se esse ambiente de suspeição, o que poderia ter sido evitado com uma perícia, muito menos para contestar o conteúdo, mas para provar que não houve qualquer alteração – disse um criminalista que prefere ter o nome preservado.
A PGR também envolveu-se em polêmica referente à concessão de benefícios aos delatores, que, para contarem tudo que sabem, ganharam anistia total dos crimes praticados. Cauteloso, o professor da Unisinos Carlos Eduardo Scheid ressalta:
– Não sabemos ainda, na integralidade, como ocorreu esse acordo de delação.
QUATRO MOMENTOS DE CONTROVÉRSIA
Divulgação de diálogo aleatório
A inclusão de conversas telefônicas do jornalista Reinaldo Azevedo com Andrea Neves, a irmã do senador afastado Aécio Neves (PSDB-MG) e investigada pela Lava-Jato, no material que teve o sigilo retirado pelo ministro Edson Fachin, relator da operação no Supremo Tribunal Federal (STF), foi alvo de questionamentos por diversos setores, da imprensa ao próprio Judiciário. A publicidade de diálogo sem qualquer relação com as apurações é vista como abuso de privacidade e quebra do sigilo da fonte, garantido pela Constituição aos jornalistas.
Gravação usada sem perícia prévia
A gravação de conversa com Michel Temer feita por Joesley Batista estourou a crise política no país e foi peça fundamental para abertura de inquérito contra o presidente. Mas, tão logo o áudio se tornou público, surgiram suspeitas apontadas por perícias independentes e uma contratada pela defesa de Temer sobre a possibilidade de o conteúdo ter sido editado. A questão foi parar no STF, que ordenou a realização de perícia oficial, ainda não concluída. O procurador-geral da República, Rodrigo Janot, argumenta que a delação "é muito maior do que os áudios".
Sensação de impunidade
Depois de entregar gravação de conversa com o presidente e fazer série de denúncias contra políticos de todo o país, o empresário Joesley Batista embarcou para temporada com a família em Nova York. O acordo de delação firmado pela Procuradoria-Geral da República, concedendo aos delatores a garantia de que não seriam processados, presos ou sequer teriam de usar tornozeleira eletrônica, bastando apenas pagar uma multa – cujo valor também foi questionado –, resultou no sentimento de impunidade compartilhado por grande parte da população.
Mala sem rastreamento
Em ação controlada pelo Ministério Público Federal (MPF), o primo de Aécio Neves (PSDB-MG), Frederico Medeiros, o Fred, foi filmado recebendo mala com R$ 500 mil das mãos de um diretor da JBS. O mesmo ocorreu em 28 de abril com o deputado afastado Rodrigo Rocha Loures (PMDB-PR). O indicado por Michel Temer como interlocutor à empresa recebeu outra mala, também com R$ 500 mil, mas sem chip de rastreamento – estratégia empregada na entrega a Fred. O MPF ficou 24 dias sem saber onde estava mala, até que o próprio Loures a devolveu na segunda-feira, com R$ 35 mil a menos.