Situações dramáticas como a vivida na escola Luiz de Camões, de Cachoeirinha, estão na lupa do trabalho de justiça restaurativa promovido pela Associação dos Juízes do Rio Grande do Sul (Ajuris). O juiz da Infância e da Juventude Leoberto Brancher tem promovido a aplicação desse método, que se opõe à justiça punitiva-retributiva, e, por conta disso, o Rio Grande do Sul é um dos Estados brasileiros pioneiros no tema. O Tribunal de Justiça adota técnicas restaurativas desde 2014 como filosofia "contra a violência e pela paz". Aplicada em litígios, a justiça restaurativa busca, pelo diálogo, o aperfeiçoamento humano dos envolvidos.
Nessa linha, a Ajuris trouxe a Porto Alegre o canadense Aaron Lyons, que lidera processos de restauração e seminários de treinamento para participantes de justiça criminal e ambientes educacionais em países como Canadá e Estados Unidos. Em 2008, Lyons serviu como Coordenador de Justiça Juvenil na Nova Zelândia, convocando e mediando conferências de grupo familiar no primeiro programa sistematizado de justiça restaurativa do mundo. Trabalhou extensivamente com jovens e adultos enfrentando questões de envolvimento com gangues, sem-teto, violência familiar, abuso de substâncias e trauma psicológico.
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Lyons promove ainda programas de diálogo para grupos envolvidos em conflitos internacionais. Desde 2009, atua no pioneiro Programa de Mediação de Vítimas e Agressores da Fraser Region Community Justice Initiative, no Canadá. Após um ano em Jerusalém, estabeleceu programas de diálogo com base em artes para jovens israelenses e palestinos. Sua esperança é a de que o contato interpessoal e o conhecimento mútuo ajudem na pacificação.
Leia abaixo entrevista concedida por Lyons a Zero Hora na última terça-feira.
A vivência em um lugar emblemático pela falta de diálogo impactou na sua formação profissional?
Eu vivia em Jerusalém, vivia na fronteira entre dois povos. Aquele local, além de ter muita intolerância, é um símbolo de relações complexas e traumas, com reflexos intrageracionais. As pessoas feridas, as vítimas, ferem também as demais pessoas. O ódio aflora.
A pergunta que se faz é: como sair desse ciclo?
Pois é. Como? Há até um mapa pronto para o estabelecimento de dois Estados e da paz.
Falta vontade política de ambas as partes? Por que a situação é tão difícil de ser resolvida?
O fomento ao ódio dificulta uma solução. É muito fácil aflorar o ódio. A solução tem de ser holística, de cima a baixo e envolver todos. E é da área intermediária que isso virá.
Que área intermediária é essa? Profissionais liberais, acadêmicos? Gente moderada?
Sim, os acadêmicos, as Organizações Não Governamentais, a camada intermediária. É daí que virá a solução.
São os trabalhos dessas pessoas com crianças que resolverão?
Tenho muita esperança nisso. É o que fiz por muitos anos. Trazer crianças não só dos dois lados (israelenses e palestinas), mas de todos os recantos. A solução para o conflito não é mágica, mas a de trazer compreensão para as crianças do que realmente ocorre por lá. Não há chance para a paz se você não encontrar a humanidade no outro. Não há solução se você não trabalhar com a humanidade das pessoas.
Como a virulência nas redes sociais influencia a vida real, a intransigência e falta de respeito?
Vejo que há grande agressividade, mas o que precisa valer mesmo é o contato pessoal, na vida real. Tive a experiência de viver entre dos grupos opostos (israelenses e palestinos), e sou judeu, sou de um desses grupos. Minha reflexão sempre foi de como posso ajudar de verdade, na vida real. A grande conclusão a que cheguei é a de que temos de ser verdadeiros sempre. Só assim resolveremos conflitos. Temos de ser transparentes e autênticos. Um amigo palestino me disse que só poderia debater esses assuntos comigo se eu mostrasse meu lado judaico. Não poderia ser neutro, teria, enfim, que ser quem sou. Se fosse neutro, não teria como me contestar. Na construção da paz, na pacificação em geral, não só ali, você deve ter consciência de quem é, deve se posicionar como uma pessoa não neutra, mas, ainda assim, consciente de todos os fatores envolvidos.
O senhor está falando de não se hipócrita?
Sim, pode-se dizer que sim. A integridade é essencial para pacificar as pessoas. É fundamental a sinceridade, a cara limpa, a pessoa mostrar quem realmente é para trabalhar com facções em conflito, para construir um ambiente de paz. A pessoa deve ser real para construir a paz.
O mundo anda muito difícil em termos de desrespeito a diferenças e intolerância. Como se resolve isso?
Qualquer coisa que faça a pessoa mostrar seu lado humano e suas experiências, sua face real, encaminha a pacificação. O caminho é mostrarmos a humanidade de cada um. Penso em 40 judeus e 40 palestinos falando abertamente sobre suas experiências e traumas. Podemos falar sobre uma mãe que perdeu o filho de forma violenta falando sobre seu trauma com as pessoas. É esse o caminho para alcançarmos a pacificação. É o encontro com a realidade, uma espécie de libertação.
E nas escolas? No Brasil, temos vivido situações de colega que mata a outra, de violência contra prédios escolares, de agressões a professores. Há o bullying.
Claro, esses princípios podem ser estabelecidos em escolas e em grupos de famílias. Ao sermos verdadeiros e tratarmos da realidade, grupos e famílias se encontram e estreitam relações. Mostram suas realidades. Podem também ser no trabalho e até no ambiente criminal.
A essência é a pessoa ser verdadeira, então?
Ser genuína. Ser honesta sobre aquilo que é e até ter certo ceticismo em relação às próprias ações, sobre o que você pensa e faz. Mostrar suas reais intenções. Há um provérbio que diz que o inimigo é aquele que não ouviu ou não entendeu a história do outro. Que não explicou e não escutou.
Os governantes israelense Menachem Begin e egípcio Anwar Sadat fizeram um acordo de paz improvável em 1979. Muitas vezes ele é usado como exemplo de como negociantes mais radicalizados podem conseguir uma paz mais efetiva e sustentável. É nessa linha que o senhor fala?
É um exemplo interessante. Em Israel, trabalhei no Adam Institute, dedicado à paz, e um diretor me disse que procuravam fomentar a democracia envolvendo toda a sociedade. Havia grupos de palestinos, israelenses, de esquerda, direita, moderados, que davam um insight de como isso poderia funcionar. Com os moderados, as soluções se davam rapidamente, mas muitas vezes não perduravam. Quando conservadores israelenses participavam, dava uma gritaria, uma brigalhada, mas se chegava a soluções que perduravam. É importante termos a convicção dos grupos mais radicalizados e a cabeça aberta dos moderados.
E na relação de pais e filhos com os filhos, essa atitude de assumir o papel é importante?
O papel dos pais em relação aos filhos, sem levar em conta o gênero e levando em conta um eventual ambiente de violência, deve ser verdadeiro. Pais muito permissivos podem gerar filhos com problemas de violência. O caminho seria a relação de pais e filhos ser verdadeira, de apoio à criança e de equilíbrio. Nem devem ser muito punitivos, nem muito liberais. Pelas minha experiência profissional, vejo que permissividade em excesso e falta de apoio podem levar à violência. Na verdade, o importante é os pais estabelecerem limites. Tenho dois filhos. Quando o mais velho agride o mais novo, sempre procuro dizer que não se pode fazer, mas ao mesmo tempo por que houve a agressão. O importante é não só pôr limites, mas também saber o que levou a uma agressão.
E no caso de um professor?
Quando trabalho com professores para estabelecermos a justiça restaurativa, sempre procuramos mostrar a eles que é essencial saber onde está o limite, em razão até da segurança de todos, e também o que causou determinada situação. Ver a origem e não ignorá-la é também muito importante. Os dois comportamentos são necessários.
Vivemos a síntese entre a repressão de décadas atrás e a liberalidade da revolução cultural dos anos 1960?
Sim, certamente. Mas é mais, ainda. O importante é encorajar o estudante a mostrar sua motivação intrínseca, o que o levou a se comportar de determinada maneira. A partir disso, encorajar seu desenvolvimento.
Estamos vivendo casos de violência na escola. É preciso tratar individualmente com os alunos?
É importante haver a abordagem individual e a abordagem em grupo. O que não se pode fazer é acusar os alunos na frente do grupo, mas sim tratá-los individualmente, com técnicas de diálogo. É importante construir essa habilidade, com metodologia, que oriente para situações concretas.