Por Cláudio F. Accurso
Economista. Professor aposentado da UFRGS e ex-Secretário do Planejamento durante o Governo Pedro Simon
A decisão de extinguir fundações e eliminar mil e poucos cargos como contribuição à diminuição do déficit do Estado pode ajudar na situação de insolvência. Outro aspecto que autoriza a medida é o fato de o Estado só se viabilizar se a União encaminhar quantiosos recursos em seu socorro. A União deve se perguntar o que cada um fez até aqui em favor da situação, e o RS provavelmente esteja à frente ao mostrar seu encaminhamento da questão.
A insólita situação encontrada exigia medidas extremas e de grande coragem política. Não é agradável passar a conviver com protestos populares todos os dias e em todos os lugares, com manchetes matinais de cobrança e de insatisfação, de competências em suspeita e ainda com cobranças por atendimentos diários impostergáveis. Para uma situação criada ao longo dos anos, em que a irresponsabilidade e a omissão mostraram o quanto podiam, não há solução imediata. Estamos todos de acordo que é preciso criar um novo Estado com práticas de gestão bem diferentes. Como até aqui necessidades e carências são incontáveis e de natureza diversa, as prioridades são sempre circunstanciais.
Circunstanciais, porém, quando se trabalha apenas em conjunturas. Quando se alongam os horizontes, a perspectiva a ganhar corpo já envolve visões de futuro, que continuarão sendo políticas, porque sempre estarão envolvidas em interesses e preferências, contudo não mais premidas pelo circunstancial. É quando o sentido histórico do político entra em cena, porque é quando se delineiam os compromissos que irão modelar o desejável. As ações destinadas a concretizar esse desejável é que marcarão época e permitirão às gerações em trânsito a avaliação do que foi feito.
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O gasto público é regido por formalidades quanto a sua efetivação – concorrência, verba, liquidação etc. –, porém absolutamente omisso quanto à sua economicidade. Enquanto na atividade privada custos e preços são essenciais, na administração pública essas duas questões nem existem. Os recursos oferecidos pela carga tributária é que lhe dão a dimensão do possível, e isso é uma questão política, de poder, não involucrada em razão econômica. Essa é uma lógica individualista, porque esquece que o recurso público é de todos e que, portanto, seu melhor uso só se atinge quanto maior número de beneficiados se alcança.
Por que essas considerações quando se pondera a conveniência de manutenção de fundações do Estado? Simplesmente para lembrar que há um ângulo da gestão pública historicamente ignorado por seus dirigentes, ausente da cultura de seus administradores e que representa um grande atraso no uso dos recursos públicos e baixa consciência política a respeito.
O Rio Grande do Sul já contou (1960) com trinta alunos por professor em sua rede estadual. Hoje, são 14, isto é, 46,7% do que já teve. Isso significa a necessidade de mais do que o dobro de recursos para oferecer o mesmo serviço, ou até pior, pela baixa qualidade do ensino, em comparação.
Esse custo dobrado não é uma considerável subtração de serviços, quando se considera que, aos custos anteriores, se poderia estar oferecendo o dobro dos serviços atuais? E isso em nome de que, em benefício de quem? Os professores, tão mal remunerados, poderiam estar ganhando o dobro de seu salário fazendo a mesma coisa. Não precisavam viver contrariados com sua situação e nem periodicamente mobilizados para reivindicar o que o Estado não lhes pode dar. Isso é tão óbvio e, no entanto, ainda não perpassou as paredes do atraso da cultura administrativa estadual em pleno século 21.
No governo de Leonel Brizola, o Rio Grande do Sul montou o primeiro orçamento-programa do Brasil, cuja continuidade deu lugar ao Plano de Investimentos e Serviços Públicos 1964-1966, já no governo Ildo Meneghetti. Infelizmente, em seu primeiro ano de execução (1964), vieram o golpe militar, os expurgos, as perseguições e o desmantelamento da equipe técnica que conduzia os trabalhos, pondo tudo a perder.
A burocracia, conservadora e repetitiva, voltou atrás, abandonando todo o trabalho em andamento e reintroduzindo o orçamento tradicional com suas generalidades, imprestáveis para qualquer controle. Os políticos não reagiram, porque se sentiam mais à vontade com as generalidades com as quais estavam acostumados e que lhes davam maior sensação de liberdade no uso dos recursos. Em resumo, o conservadorismo e a resistência a inovações bloquearam um instrumental que permitiria uma gestão de outra qualidade.
Pois bem, as adversidades de hoje, talvez mais graves do que quaisquer outras, obrigam a inovações que não podem se resumir a cortes de funções, quando o que está em jogo é a questão financeira. Se o Estado calcula que oito mil professores vão se aposentar ou se afastar nesse ano de 2017, a solução seria não substituí-los e remanejar a força de trabalho disponível, para lograr um ganho financeiro superior ao que ganharia com o corte de pessoal de mil e poucos funcionários das Fundações.
As coisas são simples? Não, são difíceis, frente às resistências culturais e de interesses em jogo. A mudança de gestão vai produzir ganhos adicionais por anos até atingir os coeficientes desejados. Vai introduzir também novos métodos de racionalidade e controle nos gastos, colocando cada servidor com o compromisso de suas tarefas específicas, dentro de critérios econômicos de eficiência e menor custo.
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Mas cabe uma palavra sobre a eliminação de órgãos e funções que não caíram do céu, antes foram instituições em função de carências que o Estado resolveu encarar. Todas as áreas atingidas têm atuação sem ou com pouco interesse do mercado, por isso a iniciativa do Estado. O fato de atravessarem anos de existência, passando por governos de diferentes índoles ideológicas, testemunha sua utilidade, o que, por si só, coloca a questão em termos de prudência para juízos apressados.
Cada uma dessas áreas tem suas próprias justificativas, cuja valorização depende das prioridades de cada momento. O fato de não estarem contempladas nessas prioridades não significa sua inutilidade, porque as funções que cumprem podem ganhar relevância noutras circunstâncias. Por isso sua eliminação subtrai do futuro a possibilidade de alternativas ditadas por outras conveniências. E, mesmo que as subtrações possam ser reconstruídas, há o grande risco de se perderem as experiências acumuladas na trajetória de cada uma.
Como a razão invocada é de natureza financeira, evidentemente as suas funcionalidades ficaram de lado, o que parece indesculpável frente ao futuro. Precaução nesse terreno nunca é demais, não só pelos danos evitáveis como também por imagens menores a transparecer a gerações vindouras. A questão delicada que se impõe é: será possível ao governo, depois de solicitar e obter autorização da Assembleia para extinguir as Fundações, e ainda apresentar essa intenção como uma credencial para obter auxílio do governo federal para a situação angustiante do Estado, voltar atrás?
Sendo o interesse público que está em jogo, não há por que recusá-lo, desde que fique clara a compensação encontrada do ponto de vista financeiro. E, ao mesmo tempo, estaria anunciando uma nova etapa de gestão pública não simbolizada por cortes, mas por introdução de um novo modelo de gestão, claramente identificada com a modernidade requerida há tantos anos. Sairíamos de um quadro deprimido pela crise, desemprego e falta de perspectivas, para outro, de feição otimista com a instalação de uma nova gestão pública, calcado em eficiência e controle de produtividade, esboçado há cinquenta anos e só agora posto em prática. Sem dúvida, é uma alternativa de passar para a história com outra imagem.
O governador, por seu histórico, é um homem de bem, de reputação ilibada e de desempenho público irreparável; talvez por isso a história lhe reservou essa etapa de administrador público tão adversa e tão desafiadora, porque só homens com tais qualidades teriam condições de enfrentá-la com ânimo e determinação. Todo o seu desempenho tem-se mostrado de destemor e de desprendimento, o que o coloca como uma singularidade entre os homens públicos deste país. Por isso, torna-se necessário resguardá-lo do que possa diminuí-lo. Na verdade, um dos motivos desta moção é nos alertarmos, como cidadãos, evitando passarmos à história equivocados em nossas preferências e menos abertos às inovações que nos batiam à porta. Parece pouco?