Ao anunciar cortes para eventos históricos de Caxias do Sule enfatizar que daqui para frente o foco do governo é a segurança, saúde e educação, o prefeito Daniel Guerra coloca um grande ponto de interrogação no futuro da produção cultural da cidade e deixa uma pergunta no ar: afinal, cultura é prioridade ou não? A julgar pelo fim do patrocínio ao Carnaval, ao 20º Rodeio Internacional Campo dos Bugres e à Festa da Uva, a resposta é não. Porém, com a justificativa da crise econômica enfrentada pelo município e do déficit milionário herdado da gestão anterior, Guerra tem um bom argumento para convencer a população de que, em épocas como a atual, a cultura é, sim, matéria de segundo plano.
Preocupado com o cenário de retração e conservadorismo, um grupo de produtores artísticos vai se reunir com a prefeitura na próxima terça-feira, dia 14, para debater alternativas para a ocupação dos espaços públicos. Há o temor de que ações como a negativa de fechamento de ruas para os blocos de Carnaval e a ofensiva policial na Estação Férrea, que completou um mês no último fim de semana, se estendam para qualquer tentativa de aglomeração que envolva jovens, festa e manifestações culturais, e afastem as pessoas da convivência fora de casa. Além disso, a notificação legal no final de janeiro do Bar Zanuzi – que não teria licença para colocar mesas e cadeiras na calçada, como faz há sete anos – abriu um precedente que atingirá outros estabelecimentos tradicionais de Caxias. A medida mostrou, ao menos, que, se depender da criatividade, ninguém deixará de se divertir. Um dos frequentadores do bar forneceu dois caminhões ao proprietário, Sílvio Zanuz, que foram estacionados em frente ao local e se transformaram na "calçada" vetada. Resultado: a imagem dos clientes sentados em cadeiras nas caçambas dos veículos correu o Brasil e gerou reações bem-humoradas e irônicas nas redes sociais. Nesta sexta, Zanuz conseguiu a licença e as mesas voltariam à noite.
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Para o antropólogo e professor da UCS Rafael José dos Santos, esse "conflito" já era esperado. Ele entende que diversão e arte são tão importantes quanto trabalho, e salienta que o momento é crucial para impedir que o município siga o exemplo de cidades como Rio de Janeiro e São Paulo, que tiveram de investir milhões de reais para recuperar espaços que acabaram abandonados quando o poder público virou as costas para eles:
– Temos vivido o retorno de uma onda conservadora no discurso do trabalho, como se o lazer não fosse parte da vida ou uma fonte de renda. Em lugares onde já existe o conservadorismo, como Caxias, isso se agrava, porque encontra eco. Precisamos fazer uma reflexão muito séria para daqui a cinco, seis anos, não precisar revitalizar, ou seja, trazer a vida de volta, a espaços que ainda pulsam, como o Centro.
Cultura não é 'dinheiro morto'
A principal alegação de empresários e produtores independentes em defesa do tratamento da cultura como prioridade política é que ela fortalece a economia e se realimenta na medida em que é promovida. Por isso, o fim de repasses financeiros da prefeitura a todos os eventos – grandes ou pequenos – é uma medida vista como radical e que necessita ser reconsiderada. O ex-presidente da Festa da Uva Edson Néspolo cita, por exemplo, que a cidade ganhou cerca de R$ 200 milhões na edição de 2016 com turismo, comércio, rede hoteleira, entre outros ramos – na ocasião, foram repassados R$ 3,9 milhões dos cofres municipais à festa. Para o produtor cultural Claudio Troian, Daniel Guerra tem de sentar e negociar saídas em vez de simplesmente dizer "não há dinheiro". O corte ao Carnaval, segundo ele, é o mais delicado:
– Cada vez que encolhe um evento, encolhe o processo. É tão difícil chegar num status elevado que, se deixar a peteca cair, é complicado retomar. O Carnaval tem um impacto social, e a não realização dele atinge o espírito da cidade. Há toda uma expectativa e, de repente, some o assoalho de quem trabalha o ano inteiro em cima disso.
Os especialistas ouvidos pelo Pioneiro são unânimes em concordar que os eventos têm realmente de buscar a independência das verbas do Executivo e serem autossustentáveis. Mas isso demanda conhecimento, especialmente na elaboração de projetos para captação de verbas estaduais e federais.
– Não acontece do dia para a noite. Como bater na porta do empresário e pedir patrocínio de um projeto que só está na cabeça da pessoa? É preciso ajustar, conhecer ferramentas, saber elaborar projetos, colocar isso na rotina – ressalta a presidente do Conselho Municipal de Cultura, Luciana Stello.
O turismólogo e pesquisador Ernani Viana da Silva Neto pondera também que a cultura não é uma área com "dinheiro morto", e que apostar nela é benéfico para a própria população, que consome e deixa recursos que são revertidos para o desenvolvimento da cidade:
– A prefeitura tem de fomentar o ambiente para que as coisas aconteçam, para que a produção circule, e ser a mediadora da convivência. A cultura é estratégica para qualquer gestão porque ativa a economia, não é dinheiro morto. Não fosse assim, não teria uma secretaria.
Ocupação de espaços dentro da lei
Ao assumir a Secretaria Municipal da Cultura neste ano, a jornalista Adriana Antunes ouviu com todas as letras que não há recursos e que o desafio é criar com um orçamento reduzido. Depois de montar as equipes, ela começou a trabalhar com a ideia de três pilares: mudança de mentalidade, arte e entretenimento. Ela defende a tomada dos espaços disponíveis na cidade, com um porém: seguindo as leis.
– Se alguém quer colocar mesas nas calçadas, não é que não pode. Existe toda uma legislação e queremos regularizar isso. Estamos ansiosos por cultura e movimentação de espaços que as pessoas vão naturalmente se apropriar. A atual situação não é algo que vai continuar – garante.
Adriana afirma que a orquestra, a biblioteca pública e o museu municipal receberão atenção especial. O objetivo da secretaria é incentivar as pessoas a se interessarem por dança, coral e leitura num primeiro momento. Em paralelo, um grupo foi criado para aprender a escrever projetos para editais e viabilizar orçamentos fora do município.
– O museu não tem um plano museológico, por exemplo. Não podemos participar de concorrência para ampliação patrimonial por causa disso. É o que eu falo em fazer uma tomada de consciência do cidadão – diz a secretária.
O produtor cultural Claudio Troian entende que a ocupação dos espaços, como citou Adriana, passa pela vontade de entender os movimentos da cidade em vez de simplesmente puni-los, e por uma atuação mais forte do Legislativo:
– Me chamou atenção o veto do pedido de fechamento do trecho da Rua Alfredo Chaves, entre a Júlio de Castilhos e a Sinimbu (para o Carnaval de rua). Não tem custo algum e promove a festa de muita gente. Se a lei impede, mude-se a lei. Junto a isso, tem a questão das mesas nas calçadas. Uma denúncia não pode impedir que 500 pessoas tenham o seu momento de convívio social organizado, sem violência.
No ano passado, somente dois dos 13 projetos de lei direcionados à cultura foram aprovados na Câmara de Vereadores: o de acessibilidade dos deficientes auditivos em todas as salas de cinema e teatro, e o Sistema Municipal de Cultura – que institui as orientações e normas da gestão cultural. Muito pouco para uma cidade que precisa se reinventar com pouco dinheiro.
– Neste momento, não há um discurso na Câmara que seja direcionado para a cultura. Não se toma uma atitude no sentido de sair em defesa do sistema municipal de cultura. Ali tem gravado que cultura é um direito fundamental do ser humano, devendo o poder público prover as condições indispensáveis ao seu pleno exercício. Precisamos participar e cobrar dos vereadores – conclui Maria Cecília Pozza, conselheira do patrimônio cultural de Caxias do Sul.