A empresa contratada por 102 municípios gaúchos para construir 208 creches pode ser impedida de prestar serviços ao poder público por até cinco anos. A recomendação é fruto de auditoria realizada pelo Tribunal de Contas da União (TCU), que constatou atraso, paralisação e até abandono de obras. Nos últimos quatro anos, seis escolas infantis foram concluídas pela construtora MVC – 2,9% do total. Duas foram finalizadas ao longo de 2016, mas ainda aparecem no sistema do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação (FNDE) como "em execução".
Quando o governo federal lançou o pregão eletrônico vencido pela empresa, em 2012, o Estado enfrentava um dos piores índices de déficit na Educação Infantil, com necessidade de mais de 215 mil vagas. Até 2014, a expectativa era de que tivesse 19,4 mil novas vagas em creches construídas com um "método inovador" – supostamente mais ágil do que a tradicional alvenaria e mais limpo, com utilização de chapas prontas que só precisam ser encaixadas no canteiro de obra. Nenhum dos objetivos foi cumprido. Até janeiro deste ano, apenas 720 vagas haviam sido entregues pela MVC.
Segundo dados repassados pelo FNDE ao TCU, 56 prefeituras desistiram do método da MVC e repactuaram a construção de 82 creches de tijolos e cimento. Outras cerca de 80 obras estariam seguindo o mesmo processo, pois apresentavam percentual de execução entre 0,01% e 10,3%. As demais esperam que a MVC conclua as obras.
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Conforme levantamento da Federação das Associações de Municípios do Rio Grande do Sul (Famurs), ao menos 18 prefeituras já acionaram a Justiça para tentar forçar a empresa a agir. A primeira ação pública movida pelo Ministério Público Federal de Caxias do Sul já teve decisão favorável às prefeituras: sem sucesso em tentativa de acordo com a empresa, o juiz determinou que obras fossem retomadas em Bom Jesus e Farroupilha em até 10 dias, sob pena de uma multa de R$ 5 mil por dia, além do bloqueio de bens e valores como forma de garantir a construção. Como os prazos para a defesa da MVC ainda estão em vigor, as creches seguem paralisadas.
Na auditoria, o TCU também recomenda que o FNDE adote medidas para garantir a conclusão das obras e que solicite o ressarcimento de prejuízos causados pela empresa aos cofres públicos.
Conforme o tribunal, o órgão federal já foi notificado e se comprometeu a fazer um cronograma e a apontar solução para cada uma das 202 obras inacabadas. Para o auditor que coordenou a ação do TCU, Guilherme Yadoya de Souza, a solução deve passar pela contratação de nova empresa:
– Pelo que vimos, a MVC não tem condições de terminar as obras. Estamos cobrando do FNDE, que é nossa competência federal, para que cesse o jogo de empurra e se responsabilisse por coordenar a solução, acabando de causar esse dano irreparável às crianças.
Obra feita pela construtora em Garibaldi já tem problema
Além do atraso das obras, a auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) realizada entre agosto e outubro flagrou materiais armazenados de forma imprópria, expostos ao tempo, em obras abandonadas e apontou uma série de defeitos nas creches, como o surgimento de bolhas nos painéis que compõem as paredes e problemas de nivelamento na montagem.
Garibaldi é um dos dois municípios que inauguraram creche no último ano. A obra, porém, já apresenta problemas, obrigando a Escola Municipal de Educação Infantil Crescendo com Alegria, aberta em maio, a passar por reparos. Ainda assim, a secretária municipal de Educação, Simone Cristina Rosanelli Chies, comemora: antes dessas 120 novas vagas, o município serrano de 33 mil habitantes amargava um déficit de quase 21% – uma em cada cinco crianças estava sem ensino público.
– Praticamente resolvemos o problema de vagas e, com isso, estancamos o prejuízo que estávamos enfrentando por sermos obrigados, judicialmente, a pagar escolas privadas para cerca de 70% das crianças que estavam em lista de espera – afirma Simone.
Se todas as 208 creches estivessem prontas, segundo a Famurs, o Estado cumpriria uma das metas do Plano Nacional de Educação, que previa atendimento da demanda de crianças de quatro e cinco anos em pré-escolas até 2016. O RS conseguiu chegar a apenas 78,39%, conforme o Tribunal de Contas do Estado.
Das quatro escolas previstas para Guaíba, apenas uma foi inaugurada
Antônia tem dois anos e 10 meses de idade. Filha única de um caminhoneiro e de uma assistente de empresa de telefonia, a menina era cuidada por uma tia até quatro meses atrás. Pela necessidade, a babá voluntária aceitou um emprego e a mãe, Edilaine de Vasconcelos Abreu Pagani, 27 anos, se viu obrigada a procurar uma escola.
Sem condições de pagar os R$ 800 que uma instituição particular cobra, em média, em Guaíba, a assistente inscreveu a filha na lista da prefeitura. Em novembro, um sorteio deixou de fora o nome de Antônia.
– Acho um absurdo, porque a gente paga tanto imposto, trabalha tanto, mas quando mais precisa não tem suporte – reclama Edilaine.
Guaíba tinha cinco unidades inscritas na licitação vencida pela MVC há quatro anos. Nesse período, apenas uma foi inaugurada, em 2014. As outras quatro estão de 41% a 84% executadas. Caso todas estivessem prontas, bastaria que fosse concluída a obra de ampliação em outra unidade e o município zeraria o déficit de vagas.
Capa de ZH do dia 6 de janeiro de 2016, a creche Jardim dos Lagos permanece inacabada, mas já ganhou muros e grade e não tem mais o matagal em frente. Nem por isso deixou de ser um problema para a prefeitura, que se viu obrigada a instalar, mesmo sem condições de abrigar alunos, rede de água e de luz, tudo para que um guarda 24 horas pudesse ser alocado, a fim de impedir atos de vandalismo.
No final do ano, a prefeitura encerrou os contratos com a MVC e abriu licitação para que outra empresa finalize as escolas.
– Aqui foi favorável rescindir, porque, nas quatro unidades, 100% da tecnologia diferencial deles, que são as paredes, está pronta. Agora, faltam piso, forro e acabamentos, o que qualquer empresa de construção civil pode fazer – explica o engenheiro fiscal da prefeitura de Guaíba, Feliphe Sinhorelli.
De acordo com o engenheiro, a prefeitura tem, em conta, mais de R$ 580 mil depositados pelo governo federal. Parte está retida para caso a Justiça obrigue o município a arcar com os 56 processos trabalhistas movidos por funcionários terceirizados pela MVC. O restante será usado para finalizar as obras por meio de nova empresa.
O que faz a MVC
Ao trazer uma proposta inovadora e 100% nacional para a construção de creches, a MVC Componentes Plásticos Ltda venceu cinco lotes de pregão eletrônico, lançados em 2012 pelo governo federal, para construir 350 creches em nove Estados – além de Rio Grande do Sul, Rio de Janeiro, Espirito Santo, Bahia, Alagoas, Sergipe, Pernambuco, Maranhão e Piauí.
Em vez dos 12 meses que uma creche de tijolos convencional exigiria para ser erguida, a mesma estrutura poderia ser concluída em sete meses, utilizando chapas prontas feitas de fibra de vidro e gesso acartonado (chamado Wall System). A promessa era de que, em 2014, as escolas ficassem prontas.
Com sede na Região Metropolitana de Curitiba e fábricas também em Caxias do Sul e em Maceió, a MVC nasceu da união de outras duas empresas: Artecola, cuja sede é em Campo Bom, e Marcopolo, de Caxias do Sul.
O que diz a construtora
Sem detalhar, a assessoria de imprensa da construtora diz que a MVC está passando por "reestruturação" e está reavalizando os contratos. A empresa garante que não fechou compromissos além da sua capacidade, mas admite que tem um "descompasso no fluxo de caixa", e culpa supostos atrasos nos repasses do governo federal – algo que as prefeituras, a Famurs, o TCU e o FNDE negam.
A MVC garante que "tem como objetivo concluir todas as obras iniciadas", embora não informe prazos: "em função desse período de transição e da ainda não definição pelos controladores sobre quais ações serão tomadas, a MVC não tem como precisar quantas e nem quando as obras serão retomadas". Para concluir as creches, diz que "é necessário o reequilíbrio financeiro de cada contrato e também que a empresa recupere o seu fluxo de caixa".