Sentada no sofá e com o olhar fixo pela janela, a publicitária Ana Paula Sanches, 43 anos, encarava com estranhamento o silêncio da chuvosa tarde desta quinta-feira. Em dia de jogo de futebol, sua casa costumava se encher de animação pela expectativa do marido. Quando não ia ao estádio, Marcelo Oliveira Dias, 44 anos, assistia as partidas do Inter ao lado da filha de 4 anos, naquele mesmo sofá. Pipoca e risadas faziam parte do cenário, que se repetia com frequência.
Juntos havia 23 anos e casados há 11, algumas semanas atrás, os dias de jogo perderam o brilho para a família. No final da tarde de 20 de outubro, Marcelo foi assassinado no estacionamento do supermercado Zaffari por um grupo de criminosos que o confundiram com um desafeto. A filha, que estava sentada no banco de trás carro – que foi alvejado com dezenas de disparos –, acabou atingida por um tiro no rosto.
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Prestes a completar um mês da tragédia, Ana Paula falou pela primeira vez sobre a vida de uma família vítima da violência. Por cerca de uma hora, contou sobre a recuperação da filha, a tentativa de reconstruir sua vida, e a insegurança de sair à rua. Na última semana, o Ministério Público denunciou cinco homens por homicídio – pela morte de Marcelo – e tentativa de homicídio – contra a filha. Quatro estão presos e um está foragido.
Confira os principais trechos da entrevista a ZH.
Como era o Marcelo?
Estávamos juntos há 23 anos, casados há 11 anos. O Marcelo era uma pessoa muito pacata, a mais pacata que já conheci. Não tinha nenhum inimigo ou desafeto. Em função disso, quando a polícia me perguntava sobre quem poderia ter cometido o assassinato, eu dizia: "isso só pode ser um engano". E tinha razão.
O Marcelo era uma pessoa do bem. A gente planejava ter mais um filho, já que nossa filha pedia muito um irmão, e estávamos começando a nos organizar para isso.
Como era a rotina dele?
A rotina do Marcelo era ir ao trabalho, cuidar da nossa filha e ir aos jogos do Inter, que era a outra paixão dele. O Marcelo era sócio de duas academias de ginástica, e passava o dia de uma para a outra. Mas também levava e buscava todos os dias nossa filha no colégio, ficava com ela. A gente acordava, tomava café, e ele levava ela para a casa da minha irmã. Ao meio-dia, almoçava com ela e levava para a escolinha.
No final da tarde, pegava e iam ao Zaffari comprar o pão do dia. Todos os dias era assim, e quando eu chegava eles já estavam jantando.
No dia do crime, a rotina foi a mesma? Você lembra a última vez que se falaram?
Foi exatamente a mesma. Falei com ele de manhã pela última vez. A gente se deu o tradicional "Tchau, até a noite", só que "a noite" nunca chegou.
E como você recebeu a notícia?
Foi um dos piores momentos da minha vida. Me ligou um telefone desconhecido, e era uma inspetora da polícia perguntando se eu era mulher do Marcelo. Na hora imaginei que havia ocorrido um assalto, porque é muito comum naquela zona. Pedia para falar com ele e com nossa filha. Me diziam que ela estava bem, mas não falavam nada dele.
Minha irmã foi lá, já que eu trabalho do outro lado da cidade. Quando cheguei, estava aquele caos. O carro estava lá no estacionamento com polícia, perícia, minha filha já tinha ido para o hospital. Eu não entendia o que estava acontecendo, mas ao mesmo tempo já sabia.
Então lhe informaram do que havia acontecido...
Sim, o chão se abriu nos meus pés e o mundo caiu na minha cabeça. Me deu sensação de impotência, de que estava sonhando. Foi horrível, daí fui ao hospital ver a minha filha, que era o melhor que podia fazer naquele momento. Quando cheguei no HPS, estava fazendo uma tomografia, e aí me contaram que ela tinha sido atingida por um tiro. Aquilo foi como um tiro em mim. Mas graças a Deus, ela estava acordando da sedação quando cheguei. O tiro pegou na bochecha dela e se alojou no pescoço, mas não atingiu nada além da pele.
O médico me disse: "Costumo ver pequenos milagres, mas este nunca tinha visto". A bala entrou nela, mas não chegou a perfurar a boca, não atingiu dentes, não pegou artérias, não quebrou maxilar.
Você e sua filha chegaram a conversar sobre o que tinha ocorrido naquela noite?
Quando ela acordou, estava assustada e não falou nada, não perguntou porque estava lá. Ficou comigo, no meu colo. O atendimento do HPS foi maravilhoso, muito humano e competente. Ao mesmo tempo em que as pessoas lidam com coisas horrorosas, tem muita humanidade lá dentro. Ficamos em observação no hospital, ela dormiu comigo, mas não falava nada, só pedia água. Perguntei se ela queria que contasse histórias, e disse que queria histórias de princesas. Contei todas que sabia. Na manhã, seguinte fomos liberadas.
E sobre o pai, ela chegou a falar?
Depois de um tempo ela perguntou onde estava o pai dela. Sou espírita, então expliquei para ela que, assim como em outros falecimentos que tivemos na família, os anjinhos haviam chamado para cuidar dele no céu. Foi a forma mais lúdica que achei de contar, e é a forma que acredito. Penso que ele está em um lugar melhor, cumprindo outra etapa da missão dele.
As crianças nos surpreendem muito. Ela ouviu e aceitou. O Marcelo não deixa de fazer parte da nossa vida, só que agora em um outro plano. Na escolinha ela já verbalizou isso, dizendo que uma pessoa que ama muito virou uma estrela e foi morar no céu. Mas sobre o dia, não fala. Ela está em acompanhamento psicológico. Mas é algo que vai durar a vida inteira, um trauma desses não tem como não acarretar em nada no futuro.
Já faz quase um mês do assassinato. Como estão se adaptando a essa nova vida?
Ficamos quase um mês na casa da minha mãe. Nem sei como estamos nos adaptando, porque até a última terça-feira, pelo menos, minha vida ficou suspensa. Recém voltamos para a nossa casa, antes não tinha condições. Nesse tempo, fui elaborando tudo junto com nossa filha, junto com nossas famílias. Fomos amadurecendo, sofrendo e processando tudo isso juntos. Não sei hoje como é minha vida. A partir de agora é que vou começar a saber. Imagino que ainda seja muito difícil pensar no futuro...
Para mim, é muito difícil pensar em não ter mais o Marcelo na minha vida, mas é quase impossível pensar que minha filha não vai ter um pai. Essa dor é que queria poder tirar dela, e não pensar que tem um próximo dia dos pais, que vai ter uma formatura, e ele não vai estar lá. Isso para mim, é o pior de tudo.
Mais da metade da minha vida vivi com o Marcelo, e isso é uma coisa que vai levar muito tempo para me adaptar, porque me acostumar, nunca vou. Mas o pior de tudo é que minha filha vai crescer sem pai. Sei o valor que um pai tem na vida de um filho, e isso me dói muito. Vai faltar muito na vida dela. Mas de alguma forma nossas famílias vão ter de suprir isso. Como vai ser minha vida? Não sei. É um dia por vez.
Você deve ter acompanhado na mídia outros violentos crimes recentes. Como é viver com essa sensação de insegurança?
É uma sensação horrível, a vida está muito fútil. Nesta semana, dois meninos foram assassinados por engano. É revoltante, sim, mas a revolta não me traz nada de bom e nem para o Marcelo nem para nossa filha. Preciso aceitar, porque não aceitar não muda nada. Mas posso tentar transformar essa revolta em coisa boa. O que peço hoje é que não aconteça com outras pessoas.
A sensação de ter de contar para o teu filho de que o pai está morto, não desejo para ninguém. Mas a gente vive num Estado falido, com sistema prisional falido, e sabemos que não vai ser resolvido de hoje para amanhã. A culpa não é de ninguém, é de um processo que vem acontecendo.
O policial prende e não tem onde colocar o ladrão, por exemplo. O problema é do sistema, que foi se deteriorando aos poucos. Não é mais por mim que peço, porque comigo já aconteceu o pior. A minha segurança agora é a da minha filha e dos filhos de todos.