Com recurso anual de R$ 1 milhão, que não é reajustado há sete anos, as 69 entidades sociais de Caxias do Sul beneficiadas pelo Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente vêm cortando empregos e programas desde o ano passado. Se a situação permanecer como está, elas correm risco de entrar em grave crise a partir de 2017.
No final de agosto, membros do conselho que administra o fundo (Comdica) foram até a Câmara de Vereadores cobrar dos candidatos a prefeito o compromisso de reposição das perdas inflacionárias entre 2009 e 2016, readequação do orçamento a partir do próximo ano e a criação de mais um Conselho Tutelar para dar conta da demanda crescente por locais de acolhimento.
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Em uma carta, assinada pela presidente do Comdica, Rachel Ivanir Marques dos Santos, a entidade convida o futuro chefe do Executivo de Caxias a dar "prioridade absoluta" às 7,8 mil crianças e adolescentes atendidas com os valores, em respeito ao que determina a lei 8.069/90, do ECA.
– Precisamos manter os programas sociais que temos hoje e ampliá-los. Deveriam ser repassados, com as perdas orçamentárias, mais R$ 500 mil por ano, pelo menos. Esse momento de desemprego e desestabilização nos prejudica bastante – afirma Rachel.
A crise econômica do país, que tem fortes reflexos locais, agravou o problema. Entre 2013 e 2015, houve queda de 60,2% na arrecadação de impostos de pessoas jurídicas, que junto ao IR de pessoas físicas compõem o montante que permite a sobrevivência dos trabalhos voltados a crianças e jovens em situação de vulnerabilidade.
– Também queremos que os trabalhadores das ONGs sejam valorizados. Há uma disparidade grande de salários. Outra questão ainda é a mudança na legislação das parcerias de fomento com o poder público, para que não fiquem abaixo do que é praticado no mercado – complementa Rachel.
Para a presidente da Fundação de Assistência Social (FAS), Marlês Andreazza, é "preciso dar as mãos, criar alternativas e superar a crise juntos, pois não há onde buscar (recursos)":
– Assim que a arrecadação aumentar e a economia voltar ao normal, duvido que quem esteja no poder não vá querer fazer esses ajustes. As entidades, agora, têm de fazer mais com menos, e com mais qualidade, por incrível que pareça.
"Recebemos crianças que não sabem nem comer com talher"
Localizada no bairro Fátima Baixo, a Associação Criança Feliz é um ponto de referência há 21 anos na zona norte de Caxias. No momento, 226 menores de idade são atendidos por 17 profissionais, que comandam oficinas e atividades culturais, esportivas e de inclusão. No ano passado, eram 23 funcionários. Enquanto o quadro de trabalhadores encolhe, a lista de espera para acolhimento aumenta: até setembro, já estava em mais de 40.
Por meio de projetos, eventos, doações e auxílio de ONGs, a entidade tenta vencer a crise sem novos cortes, o que deve ser difícil sem o reajuste pretendido no fundo do Comdica, que responde por 70% do pagamento de pessoal da instituição. As seis demissões afetaram auxiliares de limpeza e professores.
– É um dinheiro fundamental. Isso precisa ser prioridade absoluta, o prefeito tem de investir na prevenção. Só assim teremos menos lotação em abrigos, casas lares e no Case. A gente recebe aqui, para se ter ideia, crianças que às vezes não conseguem utilizar o banheiro e não sabem nem comer com talher – alerta a gerente da associação, Sibele da Rosa.
Os reflexos da crise são sentidos também no processo de inserção de adolescentes no mercado de trabalho. Como eles só podem ficar na casa até os 15 anos, a partir dos 13 começam a ser direcionados a cursos profissionalizantes.
– Diminuiu significativamente a oferta. Ele não fica aqui, não vai para a escolha e não trabalha. É uma lacuna complicada – pondera Sibele.
Situação semelhante vive a Entidade de Assistência à Criança e Adolescente (Enca), que atua com 360 jovens nos bairros Reolon e Belo Horizonte – alguns com necessidades especiais. Para manter o número de 45 funcionários, a opção foi demitir os mais antigos e substituí-los por novos, que ganham menos, e fazer diversos remanejamentos. Em busca de "padrinhos" para assumir contas como luz e água, a presidente da Enca, Elaine Rosa, diz estar com medo do que pode acontecer no futuro próximo:
– Se ficar como está, lutaremos para evitar demissões. Se diminuir a verba, teremos de nos moldar. Estamos trabalhando com muito medo de como vai ser no ano que vem.
O que diz a carta
Senhor Candidato:
O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – Comdica, representado por sua presidente, informa que de acordo com o disposto na Lei Federal n° 8.069/90 – Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA, é um conselho deliberativo, formulador das políticas de atendimento às crianças e adolescentes, controlador das ações e gestor do Fundo Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente – FMDCA, que tem como finalidade, articular as ações governamentais e não governamentais do município nas iniciativas de proteção e defesa dos direitos das crianças e dos adolescentes.
No uso de suas atribuições, ao longo de seus 26 anos de existência, vem adotando providências e desenvolvendo ações no sentido de promover o reordenamento das instituições de atendimento às crianças e adolescentes de Caxias do Sul. Com este objetivo, o Comdica, acreditando na prerrogativa constitucional da prioridade absoluta em favor das crianças e adolescentes, dirige-se ao senhor candidato para convidá-lo, a assumir, caso eleito, o compromisso de institucionalizar a ética da prioridade absoluta.
Esse princípio não se fundamenta apenas em sentimentos, mas é a razão da existência do Comdica. Atualmente, o recurso oriundo do Orçamento Municipal destinado ao FMDCA é de R$ 1 milhão. Estes recursos estão estagnados desde o ano de 2009, não sendo repassados nem mesmo os índices inflacionários. Atualmente, 69 Entidades são registradas neste Conselho, sendo que as mesmas atendem diretamente 7.800 crianças e adolescentes diariamente, destas 3.160 com recursos do FMDCA, e aproximadamente 20 mil em atendimento indireto.
Informa que os recursos que complementam a receita do FMDCA originam-se da contribuição de pessoas físicas e jurídicas, por meio do incentivo fiscal previsto em Lei. Constata-se que a dedução do 1% do imposto de renda de grandes empresas parceiras vem caindo assustadoramente, sofrendo uma queda na arrecadação de Pessoas Jurídicas de 60,2% no período de 2013 a 2015. Constata-se, também, o alto índice de desemprego e o fechamento de postos de trabalho que, com certeza, impactará na arrecadação dos 6% do imposto de renda de pessoas físicas.
Considerando que as entidades não governamentais dependem do auxílio do FMDCA para continuarem suas atividades, e que o poder público, a médio prazo, não possui capacidade para absorver toda a demanda de crianças e adolescentes do município, recorremos ao senhor candidato a prefeito de Caxias do Sul, para que assuma o compromisso de, se eleito for, primeiro: reavaliar os valores repassados do orçamento ao FMDCA, repondo as perdas inflacionárias do período de 2009 a 2016 e ajustando os valores em conformidade com a demanda decorrente da crise econômica e social.
Segundo: valorizar os trabalhadores que atuam nas ONGs de Caxias do Sul, oportunizando tabela de valores unificada para todas as secretarias e/ou fundações para execução de serviços, projetos e/ou programas de crianças e adolescentes, possibilitando a equiparação ao salário-base dos servidores públicos municipais. Ao estabelecer parcerias por chamamento público (Termo de Colaboração ou Termo de Fomento), editais, licitações e outros, há redução dos custos do poder público municipal, porém, as ONGs não podem ser penalizadas com a aplicação de planilhas com valores abaixo dos praticados no mercado, pois compromete a qualidade na execução do atendimento.
Terceiro: criar mais um Conselho Tutelar, conforme determinação exposta em Inquérito Civil nº 6.536/73 que tramita na 4ª Promotoria, referente ao cumprimento, pelo município de Caxias do Sul, das disposições do ECA, e Resolução nº 139 de março de 2010 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda, que dispõe em seu art. 3º, parágrafo 1º: "para assegurar a equidade de acesso, caberá aos municípios e ao Distrito Federal criar e manter Conselhos Tutelares, observada, preferencialmente, a proporção mínima de um conselho para cada 100 mil habitantes".
Senhor Candidato, os operacionalizadores dos Direitos da Criança e do Adolescente e da Assistência Social, após anos de luta e avanço, temem retrocesso na Proteção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente, ao serem tratados de forma desigual frente outras políticas públicas. Este documento será entregue a todos os candidatos a prefeito municipal de Caxias do Sul, para que afirmem, por escrito, que assumem o compromisso de defender estas propostas. Certos do compromisso com estas deliberações, colhe a oportunidade para que ratifique esta Carta Compromisso.
Caxias do Sul, 31 de agosto de 2016.
Rachel Ivanir Marques dos Santos, presidente do Comdica
O que prometem os candidatos
Daniel Guerra (PRB )
Vou dizer o que falamos pessoalmente para as entidades e as pessoas que estão nessa luta há tantos anos: não há melhor discurso do que a assinatura que colocamos nessa carta compromisso. O teor é muito claro e sintetiza, em linhas gerais, aquilo que de fato nós, na prefeitura de Caxias, estaremos fazendo em conjunto com o Comdica nesta causa que, para nós, é prioridade.
Francisco Corrêa (PSOL)
"É preciso rever essa verba e atualizá-la, sem dúvida alguma. Para lidar com a situação mais vulnerável, é preciso aumentar. A criação de mais um Conselho Tutelar está dentro das normas, pois a cada 100 mil habitantes se prevê um conselho. É perfeitamente cabível o pleito que o Comdica está fazendo. Concordamos e assinamos a carta."
Edson Néspolo (PDT)
"Assinamos a carta de forma responsável, com restrição, pois essa questão está condicionada à situação econômica. O município investe mais de 50% do seu orçamento na área social. Nos últimos cinco anos, a prefeitura, por meio da FAS, do Comdica, do FMAS e do FUMDI, repassou mais de R$ 18 milhões para as entidades da rede de atendimento à criança e ao adolescente. Nosso compromisso é fortalecer os programas sociais existentes e promover estudos visando os reajustes solicitados, a criação de mais um Conselho Tutelar e a implantação de serviço para acolhimento dos egressos das Casas Lares."
Assis Melo (PCdoB)
"É uma questão que envolve orçamento. Sempre é preciso olhar, dentro das condições do município. Tudo que estiver dentro da lei, será analisado. As reivindicações são sempre justas, e o gestor tem de procurar atender dentro das normas."
Vitor Hugo Gomes (REDE)
"A questão da criança é uma prioridade e existe a necessidade de um novo Conselho Tutelar na cidade. Eu não conheço essa matéria dos repasses, mas eu me comprometo em estudar, discutir com as entidades, reunir com elas e dar prioridade para a solução desse problema."
Pepe Vargas (PT)
"A criação de um novo Conselho Tutelar é um compromisso que está em nosso plano de governo. Entendo não ser desejável que o repasse do orçamento municipal fique congelado tantos anos. Temos de, pelo menos, corrigir de acordo com a inflação. Há também um enorme espaço para ampliar as receitas de doações de pessoas físicas e jurídicas. Faremos uma campanha intensa para que as pessoas com rende melhor possam doar ao fundo."