O cruzamento entre os cadastros dos eleitores e os números sobre a população de cada uma das cidades de Santa Catarina, feito pela RBS TV, revelou que 29 têm mais eleitores do que moradores. Inicialmente não há problema porque, pela lei, a pessoa pode votar onde mora, onde trabalha ou onde mantém vínculos familiares. Mas a irregularidade aparece quando são usadas declarações falsas para transferir o domicílio eleitoral, como foi apurado pela reportagem. Por isso, o Tribunal Regional Eleitoral não tem um levantamento sobre quantas transferências de títulos no Estado para as eleições de 2016 são legais.
O eleitorado maior do que a população é registrado em 19 municípios do Oeste, seis da Serra e quatro do Sul. A maior diferença foi em Ermo, no Sul, com 945 eleitores a mais do que moradores, seguida por Guatambu (513 a mais) e Caxambu do Sul (com 482). Houve flagrantes da RBS TV em que eleitores informaram votar em um local, mas admitiram morar em outro – sendo que a reportagem teve acesso a documentos em que a pessoa declara dois endereços diferentes ao mesmo tempo.
– Tudo depende da situação concreta e é preciso verificar em cada município onde isso acontece. Quando há 100, 200 eleitores a mais que habitantes, é um número elevado, não é normal. Acende a luz vermelha e indica a necessidade da Justiça Eleitoral fazer uma checagem de todos os cadastros eleitorais desta cidade para eventualmente detectar possíveis irregularidades e proceder o cancelamento de títulos possivelmente transferidos de forma ilegal – explica o advogado e professor de Direito Eleitoral, Maurício Prezotto.
Oitenta transferências com suspeita de fraude em Ermo já chegaram na Justiça Eleitoral neste ano e 10 foram canceladas até o fim de junho. Sem saber que estavam sendo gravados, alguns eleitores citaram à reportagem da RBS TV ajuda financeira, troca de favores e pedidos de parentes ligados à política como justificativas para mudarem o domicílio.
– Ermo não tem grandes empresas, grandes obras que justifiquem essa imigração eleitoral maciça. Então eu atribuo essa movimentação a uma cooptação de agentes políticos, de presidentes de partidos, pessoal de diretório de partidos políticos, de pretensos candidatos, que devem ter ido a municípios próximos e nem tão próximos arregimentando eleitores – avalia o juiz eleitoral de Turvo, Manoel Donisete de Souza.
Outra situação incomum ocorre em Piratuba, no Oeste, que foi a cidade que mais recebeu transferências de títulos nos últimos meses. Foram 432 no município de 4,3 mil habitantes – mais do que em Mafra (427), onde vivem 55 mil pessoas. Isso mesmo com o IBGE estimando queda na população entre 2010 e 2015 e com a Câmara dos Dirigentes Lojistas (CDL) dizendo que não houve nenhuma movimentação econômica capaz de justificar tantas transferências. O Cartório Eleitoral de Piratuba decidiu investigar parte dos pedidos e constatou que a maioria não morava onde declarou. Vinte, de 30 solicitações, foram indeferidas.
Números sustentam forte indícios de aliciamento, diz cientista político
Uma ameaça à democracia e prejuízos para o cotidiano das comunidades nos municípios. Essa é a análise do cientista político Cesar Pasold sobre o impacto caso as suspeitas de irregularidades em transferências de domicílios eleitorais no Estado se confirmem. Para ele, os números sustentam fortes indícios de aliciamento eleitoral.
– Há atos de corrupção implícitos nessa situação. A democracia se sustenta por eleições diretas, secretas, universais e periódicas. Na hora em que se alicia, o caráter secreto não está mais garantido e se instala um ciclo antiético – comenta.
Além do efeito moral, servindo de exemplo negativo para as novas gerações que irão votar, Pasold pondera ainda que as transferências ilegais prejudicam também o dia a dia da população e encarecem o sistema eleitoral:
– O custo financeiro de uma eleição pode ser elevado pelo deslocamento de eleitores e há impacto social, porque pessoas estranhas à comunidade vão ajudar a escolher os políticos. São pessoas que vão votar comprometidas com candidatos e descomprometidas com a comunidade.
Transferências são alvo de inquérito policial em Ermo
Ermo foi emancipado apenas em 1992 e esse é um dos fatores que, na visão do juiz eleitoral de Turvo, Manoel Donisete de Souza, explica a situação recorrente do município ter mais eleitores do que habitantes. No início da história da cidade, muitas pessoas residiam em Araranguá, mas próximas do limite com Ermo. Assim, acabaram atendidas pela prefeitura do novo município e depois transferiram o título para lá.
– Também ocorre a distorção por conta da definição de domicílio eleitoral, que é muito mais amplo do que o de domicílio civil. O civil é onde você efetivamente mora a maior parte do tempo, enquanto o eleitoral pode ser um vínculo especial, como emprego, familiar residente e até patrimonial – diz o juiz.
O magistrado destaca ainda que isso facilita o aliciamento e dificulta provar transferências irregulares. Um inquérito policial foi aberto em abril deste ano a pedido de Souza para apurar irregularidades nos procedimentos, mas o processo foi arquivado pelo Ministério Público Eleitoral por não haver indício de crime eleitoral.
– Realmente não havia indício, porque é algo muito difícil de provar. O eleitor não vai chegar diante do delegado e dizer que transferiu porque teve uma promessa de vantagem indevida futura. Os políticos muito menos – aponta o magistrado.