O lugar que deveria ser a esperança de um recomeço acabou sendo o fim da vida para sete homens. Internos do Centro Novos Horizontes (CNH), clínica de tratamento para dependentes químicos, eles morreram carbonizados e pela inalação de fumaça de um incêndio iniciado na madrugada desta quinta-feira no local, interior de Arroio dos Ratos, na Região Metropolitana.
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Três pessoas ficaram gravemente feridas e permanecem internadas em hospitais da Capital na noite desta quinta-feira. Entre elas, um dos três funcionários da clínica que passavam a noite no local. Outro deles está preso em flagrante e o terceiro, um ex-policial militar que é gerente da unidade, teria recebido ameaças de agressão após o incidente e fugiu.
Todas as vítimas fatais do incêndio estavam confinadas em quartos chamados de centro de observação (CO). Semelhantes às celas do sistema prisional, os três espaços têm grades nas janelas e atrás da porta, trancados pelo lado de fora por cadeados. Ali os internos passavam o dia, com exceção de uma hora ou duas de permissão para banho de sol. Destinado ao período de desintoxicação, os quartos CO somavam capacidade para cerca de 12 pacientes.
– Por um acaso, não tomei o remédio para dormir e acordei com uma gritaria. Falavam "fogo", "abre isso". Deu tempo de acordar dois amigos e logo fiquei inconsciente. Desmaiei com a fumaça e acordei no hospital – lembra um interno de 35 anos, formado em Gastronomia, que prefere não se identificar.
Na 16ª fazenda terapêutica por onde passou, ele diz que deparou no CNH com o pior lugar, o único com grades. Ele estava no CO ao lado daquele onde as chamas começaram. A causa ainda é investigada pela Polícia Civil, mas relatos das testemunhas indicam que o incêndio teria sido provocado pelos internos com um isqueiro, na intenção de promover um tumulto e escapar, mas o fogo saiu do controle.
– Consegui salvar um irmão, mas tinha muita fumaça. Me afoguei e não consegui mais, tive que sair para me salvar – relata Daniel Porfirio, 42 anos, ex-frentista devido ao vício do álcool, morador de Passo Fundo.
Um dos primeiros a chegar ao local – antes dos bombeiros, que tiveram de sair de São Jerônimo –, o tenente da Brigada Militar (BM) André Castro encontrou um corpo no CO incendiado, um no corredor entre os cômodos e quatro em um dos banheiros da clínica. Segundo ele, não havia água em nenhuma torneira ou chuveiro.
– Imagino que foram tentar buscar água para apagar o fogo ou para aliviar a fumaça, mas não caiu um pingo – avalia Castro.
Dependente químico de 24 anos, um morador da praia do Cassino conta que se enrolou em um cobertor umedecido em um tonel com água para os porcos da fazenda, do lado de fora, e voltou ao prédio para tentar resgatar os colegas.
– Consegui tirar três pessoas, uma delas morreu no meu colo (a caminho do hospital). Não volto pra cá. É um lugar que mantém em prisão quem não cometeu crime – lamenta ele, que passou dois dos cinco meses internado confinado no CO.
Os sobreviventes que não precisaram de atendimento foram encaminhados em uma van escolar até a Delegacia de Polícia de Arroio dos Ratos. Depois de aguardarem cerca de sete horas na calçada, prestaram depoimento e foram resgatados por familiares ou serviços de seus municípios de origem.
Três funcionários foram presos em flagrante
A polícia prendeu em flagrante e pediu a prisão preventiva de três funcionários da clínica: Carlos Augusto Batista (coordenador), Paulo Ricardo Santos de Souza (supervisor) e Vander Luiz Gomes Hernandez (monitor). Roberto Carlos Lindner Dolejal, ex-policial militar e gerente do centro de recuperação, que estava como chefe de plantão no local, teria recebido ameaças de agressão em razão do incêndio e fugiu. Ele está sendo procurado.
– Vamos autuar o supervisor, o coordenador e o indivíduo que estava com a chave da sala de contenção (monitor) por homicídio qualificado com dolo eventual, combinado com cárcere privado e omissão – disse o delegado Pedro Urdangarin, acrescentando que não havia denúncias contra a clínica.
O advogado José Garcez, que representa Batista, afirmou que seu cliente estava em casa quando o incêndio começou e foi ao local apenas depois de chamado. Com base nisso, pretende pedir a liberdade provisória do coordenador. Os defensores dos outros dois presos não haviam sido oficializados à polícia até a tarde desta quinta-feira. Antes de ser detido, Hernandez disse à Rádio Gaúcha que correu para abrir os quartos quando o incêndio começou. Mas alega ter sido agredido, inclusive com um extintor, e acabou perdendo a chave.
Outros diretores da CNH devem ser chamados a depor. O gerente-geral, segundo a polícia, estaria em viagem no Exterior. Os investigadores colheram os depoimentos dos internos e dos funcionários e tentam juntar as peças. O resultado das perícias deve ser determinante para apurar as causas do incidente. O diretor-geral do Instituto-geral de Perícias (IGP), Cleber Müller, foi até a fazenda acompanhado dos mesmos peritos de engenharia que atuaram no caso da Boate Kiss. Ressaltando a necessidade dos exames de necropsia, ele adiantou:
– Queima de colchões libera monóxido de carbono, mesmo gás encontrado no incêndio da Kiss. Mas lá também havia cianeto, portanto, a fumaça era mais tóxica.
A clínica de Arroio dos Ratos era uma das quatro do CNH, com mensalidade que variavam de R$ 700 a mais de R$ 2 mil, segundo contam internos e familiares. No total, a fazenda estaria abrigando 42 pacientes em tratamento contra dependência química. O Centro ainda mantém outras duas unidades em Porto Alegre, uma no bairro Lami e outra no bairro Chapéu do Sol, especializada em menores de idade, além de uma terceira fazenda terapêutica no município de Santo Antônio da Patrulha. A reportagem tentou contato com a administração do CNH, na Capital, mas não obteve retorno.
Acompanhe as atualizações pelo Twitter da repórter Vanessa Kannenberg, que esteve no local: