Era meio-dia quando o juiz titular da 1ª Vara Criminal, Ulysses Fonseca Louzada, anunciou que os quatro réus do processo criminal da boate Kiss iriam a júri popular. Quando a decisão saiu, um grupo de familiares de vítimas e sobreviventes da tragédia já estava há algumas horas na Praça Saldanha Marinho, na chamada Tenda da Vigília – ponto de encontro e solidariedade, especialmente nos dias 27 de cada mês, quando as associações de pais realizam homenagens aos 242 mortos.
Confira os próximos passos do processo criminal da boate Kiss
Nesta quarta-feira, quando se completavam três anos e meio do incêndio, não seria diferente. Mas os comentários sobre a decisão judicial entremeavam as conversas saudosas de quem perdeu parentes no fatídico 27 de janeiro de 2013.
Para juristas, decisão final pode demorar pelo menos mais cinco anos
Flávio Silva, presidente do Movimento Santa Maria do Luto à Luta, definiu o pronunciamento do juiz como um momento de resistência e esperança:
"O único caminho que existe é o Tribunal do Júri", diz juiz Louzada
– Não estávamos preparados para uma decisão diferente. Dá um pouco de alívio, pois chegamos a acreditar que não daria em nada. Nesse tempo de angústia, fomos processados pelo Ministério Público, sofremos, aprendemos algumas coisas na marra. Agora, temos que esperar o julgamento, mas uma luz já se acendeu no fim do túnel.
Confira o que fazem, atualmente, os réus do processo criminal da Kiss
Resultado de trabalho
Para o ex-presidente da Associação dos Familiares e Vítimas de Sobreviventes da Tragédia de Santa Maria (AVTSM,) Adherbal Ferreira, que acompanhou a movimentação do dia de forma reservada, a sentença é resultado do trabalho realizado pelos familiares, junto aos advogados, ao longo dos anos.
– Todo o dia 27 é uma data que aperta o nosso coração, ficamos apreensivos, e essa decisão era o que vínhamos desejando. A sentença é como um remédio que colocaram para dar um alívio na nossa cicatriz. Hoje, a gente pode louvar um pouco e agradecer. Embora a gente saiba que existe recurso e que os réus podem recorrer, tenho plena convicção de que, aqui em Santa Maria, eles serão condenados.
Advogados dos réus se dizem surpresos com decisão do juiz
Solidariedade tímida
Ao longo da semana, ao convidar a comunidade a participar das homenagens pelos 42 meses da tragédia, os familiares das vítimas pediram abraços e solidariedade. A população respondeu timidamente. A programação iniciada às 10h, reuniu grupos variados a longo do dia para orações, momento de reflexão e abraços coletivos. Às 17h, um minuto de barulho, com salva de palmas e apitos.
Um círculo, unia as únicas 19 pessoas que ali estavam.Contrastando a emoção de pais e sobreviventes, a cidade que em 27 de janeiro de 2013 esteve sob os holofotes do mundo inteiro, em 27 de julho de 2016, parecia seguir sua rotina como um dia qualquer.
Em um banco, três aposentados de 61, 62 e 73 anos aproveitavam o sol e direcionavam o olhar para a tenda onde estavam os familiares e sobreviventes da tragédia, a metros de onde estavam. Um deles informava aos outros:
Linha do tempo: os dias que marcaram os três anos e seis meses da tragédia na boate Kiss
– Hoje saiu o negócio aquele da Kiss, né?
Um absurdo.O outro homem concordava, acrescentando:
– A Justiça é porca, desacreditada.O terceiro mal sabia o que acontecia de diferente em Santa Maria.
Um casal de adolescentes de 17 e 15 anos que passeava pelo Calçadão, ao ser questionado pela reportagem, mostrou-se surpreso:
– Foi a hoje a decisão? Só ia ficar sabendo se aparecesse no Facebook, mais tarde.
"É justiça social", diz presidente da AVTSM
Em uma analogia a uma partida esportiva, o atual presidente da AVTSM, Sergio da Silva, tenta avaliar a sentença do juiz Ulysses Fonseca Louzada.
– Perdemos tudo que tínhamos. Perdemos nosso filho. Perdemos de 5 a 0, derrotados pelo Ministério Público, pelo apoio do Estado e de parte da sociedade. Fomos até Brasília, de porta em porta. Essa decisão não está definida ainda. Mas, como se fosse em um jogo, não chegamos a fazer o gol, mas avançamos. Hoje, não é só justiça pessoal, é justiça social. Estou nesta luta como cidadão, para que a sociedade possa ser um lugar com menos impunidade e mais seguro. Estamos aqui para que não se repita – salientou o presidente.
Sobre a perda e a saudade do filho Augusto, Silva conta com apoio da família e dos amigos. A mulher, Nadir Krauspenhar da Silva, salienta:
– Podem mandar quem for para cadeia, nada vai substituir ou trazer meu filho de volta. Só posso dizer que hoje meu coração está livre.
O sobrevivente que ressignificou a vida
Se para alguns a espera por justiça calejou dia após dia, para outros, o tempo serviu como regeneração. Apesar das cicatrizes que marcam as mãos e braços do veterinário Gustavo Cauduro Cadore, 35 anos, a mente é tranquila, e a gratidão, pelo simples fato de estar vivo, é o que o faz seguir sem revoltas.
– Nunca acompanhei muito a parte jurídica... Só penso que a corda sempre estoura para o lado mais fraco. Acho que tem gente mais importante que deveria estar ali. O que eu queria é que esses pais tivessem justiça. Eu? Eu nem sei a dor de perder um filho. Estou vivo, tenho todos os membros e meu rosto segue igual – relata o veterinário, em tom de agradecimento.
Sobrevivente do 27 de janeiro de 2013, Cadore ficou 24 dias internado e 12 em coma. A vida tem lá suas limitações e o acompanhamento médico segue. Mas, a tragédia ressignificou o que antes parecia banal:
– Lembro o primeiro dia em que consegui dar quatro passos sozinhos. Depois, segurar um copo sem a ajuda de ninguém... e assim foi. Hoje me sinto tranquilo. Aprendi a dar valor às pequenas coisas.
O que dizem os demais familiares das vítimas da tragédia
– A Kiss foi um divisor de águas Até hoje, faço acompanhamento com fisioterapeuta e pneumologista. Cada vez que entro em uma festa, vou em um lugar, fico preocupado se tem saída, se está com o alvará em dia. Esse júri popular é uma resposta, dá uma esperança. Parece que a coisa vai para a frente.”Maike Adriel dos Santos,24 anos, sobrevivente
“Foi uma espera angustiante. A decisão do júri popular foi boa, mas ainda são poucas as pessoas sentadas no banco dos réus.
Maria Aparecida Neves, 57 anos, mãe de Augusto Cezar Neves
– Demoraram muito. E não fizeram mais que a parte deles. Deveria haver mais 23 pessoas condenadas. Onde está a gestão administrativa? Onde estão os bombeiros? Onde estão o prefeito e o governador? Não são eles que estão chorando em cima de um túmulo há três anos e meio.
Vanda Dacorso, 54 anos, mãe de Vitória Dacorso Saccol
– Para mim foi ontem. A nossa dor vai ser para sempre. Hoje é mais um dia. Está tudo na mesma, pois acredito na justiça divina, não na justiça dos homens. Nós perdemos o chão, perdemos o sono. E eles?
Fani Torres, 67 anos, mãe de Flavia Torres