Escondidos debaixo dos lençóis, os corpos permanecem indiferentes aos pedestres. A cor dos sapatos ao lado do colchão – tons escuros para ele e rosa para ela – deixa claro que ali, numa cama improvisada no viaduto da Borges de Medeiros, uma das ruas mais movimentadas de Porto Alegre, dorme um casal. O sol já é alto, mas o humor de quem foi acordado e ainda nem deu os primeiros bocejos recusa entrevistas. Outros casais parecem nem ouvir o barulho dos carros. Tampouco expressam reação ao insistente "bom dia". Dormem profundo, aninhados no calor da companhia.
Na Praça da Matriz, Alex Costa de Andrade, 43 anos, e Maria Regina Orguim dos Santos, 33 anos, já estão acordados e aproveitam, sentados no banco, os raios da manhã. Ela mora na rua desde pequena. Ele, foi depois de terminar um casamento. É Alex quem responde às perguntas, enquanto Maria Regina, franzina e calada, se abriga no corpo do parceiro. Na carteira de identidade dela, o registro de que é analfabeta.
– Ela é quietinha, mas quando fica braba... – avisa Alex.
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Eles se conheceram há três anos, quando Alex, já morador de rua, cozinhava um carreteiro para o almoço e convidou Maria Regina para comer. À pergunta se teriam filhos, ele responde que ela teve dois, adotados por determinação da Justiça. Evasiva, Maria Regina desvia o olhar e diz que não sente saudades das crianças. Não poderá engravidar de Alex porque fez ligadura de trompas. O casal cuida de dois cachorros, Marlon e Princesa. Ao lado dele, Maria Regina parece se sentir protegida.
Durante o dia, Alex trabalha catando plástico e papel para reciclagem. À noite, o casal assiste televisão. Na hora de dormir, atravessam a rua e vão se abrigar no pátio da Assembleia Legislativa, onde se espremem num colchão de solteiro e se aquecem com cobertores doados por instituições de caridade. Quando bate o desejo, pagam diária num hotel barato. Assim, conseguem fazer sexo com intimidade e aproveitam para tomar banho. Já fizeram amor na rua, mas foi desconfortável.
– Tem os amigos, daí pega mal. Tem que respeitar a privacidade dos outros – diz Alex.
Com ajuda das doações e o dinheiro da reciclagem, o casal tem comida garantida e roupa para vestir. Ainda assim, sonham com a casa própria e uma vida com comodidade.
– Quero ter uma casa, uma vida normal. Poder trabalhar, ter os cachorros – deseja Alex.
À semelhança de quem tem teto para viver e firma relacionamento nos moldes tradicionais, o amor entre moradores em situação de rua é baseado em sentimentos e vantagens, como necessidade de dividir as despesas e garantia de proteção. Boa parte desses casos começa nos albergues e nos centros de convivência mantidos pela prefeitura de Porto Alegre.
De acordo com a pedagoga da Fundação de Assistência Social e Cidadania (Fasc), Patrícia Mônaco, há casais em situação de rua que conseguem construir relações sólidas, baseadas em fidelidade. Uns chegam a ter filhos nessa condição. Outros trocam de parceiro com frequência. Na opinião de Patrícia, a estabilidade dos casais depende mais da maturidade e da vontade dos parceiros do que da condição social.
– Há jovens em classes abastadas que têm um parceiro por mês. Entre os jovens de rua, é a mesma situação – desmistifica a pedagoga.
Foi em um dos centros de convivência da prefeitura que Milena Oliveira Fagundes, 24 anos, e Michael Ribeiro Gonçalves, 27 anos, se conheceram. No início do namoro, Michael evitava aparecer acompanhado de Milena, que é travesti. Passava o dia aos beijos e afagos com a namorada, mas assim que chegavam ao centro, a ignorava.
– Não gostava de bicha, tinha nojo. Mas depois ela foi me acostumando – diz o rapaz, tascando beijos na companheira, como que aos pedidos de desculpa.
Assumidos, saíram do albergue da prefeitura para morar com uma amiga, que ofereceu os fundos da casa para que erguessem um puxadinho. Acusado de roubar um celular, Michael foi expulso da residência. Apaixonada e convicta da inocência do parceiro, Milena abortou a possibilidade da casa própria para seguir com ele. Foram para a rua sem roupas e outros pertences. Desde então, vivem na Praça da Matriz, e assim como Alex e Maria Regina, estendem um colchão de solteiro no pátio da Assembleia na hora de dormir.
– A gente é muito amigos. Eu não deixo ninguém fazer nada para ele – diz Milena, super protetora.
As brigas, porém, atordoam o amor. Em várias discussões travadas em oito meses de namoro, Michael ameaçou abandonar a rua e voltar para a casa da família. Quando perdem o controle, partem para a agressão. Ele exibe um corte no nariz, na altura das sobrancelhas, causado pela fúria da companheira.
– Às vezes sai um soco dali, outro daqui – confessa Michael.
– Mas não de se machucar muito – ameniza Milena.
Como os vizinhos da Praça da Matriz, o casal fica constrangido de transar na rua e paga uma diária em um hotel quando pinta o tesão. As doações das ONGs e o dinheiro que Michael consegue catando latinhas, garrafas e papeis mantém a vida dos dois. Um machucado na perna direita, resultado de uma confusão com a polícia, incomoda a ponto de o catador cogitar parar de puxar carrinho com os materiais para a reciclagem. Ele só não desiste das responsabilidades por causa de Milena.
– Ela não pede dinheiro pra mim. Eu dou dinheiro pra ela. Chego e dou: "ó, esse aí é teu dinheiro pra comprar tuas coisas". Pode faltar pra mim, mas pra ela não falta – garante Michael.
O sonho da casa própria não ofusca as aspirações individuais. Milena quer fazer faculdade, Michael quer emprego com carteira assinada. À noite, os jovens juntam-se à Alex e Maria Regina na frente da televisão. No Dia dos Namorados, pretendem curtir uma sessão de cinema no Capitólio, que tem ingresso a valor barato.
– Apesar das dificuldades, a gente é feliz – garante Milena.
* Produção: Karine Dalla Valle e Luã Hernandez
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