Discussão antiga quando o assunto é crime de trânsito, a responsabilização de motoristas por dolo eventual segue causando polêmica a partir do surgimento de novos casos de acidentes. Desta vez, o Ministério Público gaúcho tenta imputar a pena ao empresário Thiago Brentano, condutor de um Audi A5 que provocou o atropelamento de um casal no Parcão, em Porto Alegre, no início de abril.
A primeira tentativa não teve sucesso, e a 1ª Vara do Júri entendeu que a conduta do empresário é fato qualificador de homicídio culposo de trânsito, previsto pelo Código de Trânsito Brasileiro (CTB). O recurso da denúncia já foi protocolado no Tribunal de Justiça (TJ-RS), mas ainda não foi distribuído ao magistrado que será responsável pela nova análise. A expectativa da promotoria é de que a decisão demore em torno de um mês para sair.
A legislação vigente no CTB prevê punições moderadas para crimes não intencionais, passíveis de serem revertidas em penas alternativas, e não possui regras claras para enquadrar condutores que assumem o risco de matar ao dirigir de forma irresponsável, ampliando a sensação de impunidade.
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Em certos casos, responsabilizar motoristas via Código Penal como homicídio ou tentativa de homicídio, com dolo eventual – quando se adota uma conduta tão irresponsável que admite o risco de matar – parece ser a única alternativa para tentar punições mais severas. Mas é exatamente nesse ponto que começam as divergências.
O juiz aposentado Nei Mitidiero, pioneiro na adoção do dolo eventual no Estado, explica que a discussão se concentra em questões doutrinárias e jurisprudenciais.
– Alguns magistrados admitem que possa haver tentativa dolosa de homicídio no trânsito, outros ficam apenas na questão do resultado do acidente. Mas é difícil admitir que o sujeito vá se arriscar a um resultado específico. Ele não sabe o que vai acontecer – sustenta.
Fernanda Corrêa Osório, advogada e professora de direito e processo penal da PUC-RS, concorda com Mitidiero e, consequentemente, faz coro à decisão do juiz Mauricio Ramires, que rejeitou a denúncia do Ministério Público.
– Dolo eventual exige que o agente assuma o risco, e não é possível afirmar que o fato de se estar em velocidade excessiva ou de se ter ingerido bebida alcoólica signifique que ele teria assumido o risco de matar – salienta.
Mesmo com o teor da denúncia enfraquecido por decisão da 1ª Vara do Júri e também pela avaliação de especialistas, o MP decidiu, no recurso, voltar a pedir a prisão preventiva de Brentano por três tentativas de homicídio triplamente qualificado, com dolo eventual. Outro equívoco conceitual, segundo a professora da PUC-RS.
– A prisão preventiva é cabível em casos excepcionalíssimos, somente em crimes dolosos e quando estiverem presentes todos os pressupostos. Me parece exagerado o pedido de prisão nesse caso. Clamor popular não justifica prisão antes de uma eventual sentença condenatória. Só existe para assegurar o processo e não como uma forma de antecipação da pena, como uma suposta resposta à sociedade, ainda que o crime seja considerado grave – argumenta a professora.
Mitidero também desqualifica a denúncia do MP e entende que o caso de Brentano deve ser tratado como lesão corporal grave e não como tentativa de homicídio.
– Me parece que se caracteriza a prática de lesões corporais graves, com dolo eventual. O condutor não sabia se ia causar lesão corporal, matar ou se nada iria acontecer. Como ele não tem nenhum comprometimento com o resultado, o que ocorrer, de fato, é o que vai consumar o crime – justifica.
A promotora Luciane Wingert reconhece que a questão não é unânime, mas reforça que os elementos e as circunstâncias do caso justificam a denúncia.
– Há entendimentos para ambos os lados. Nunca foi um consenso. Mas cada caso é um caso. Não se trata de uma regra que se aplica a todos os casos. E a polêmica em torno do dolo eventual não se restringe ao trânsito. Só que, no caso dele (Brentano), nós observamos cinco fatores (excesso de velocidade, ingestão de bebida alcoólica, furar o sinal vermelho, participar de racha e dirigir com a CNH suspensa) que permitiram a ele fazer reflexões anteriores e pouco se importar com o resultado – ressalta.
*Zero Hora