Uma novela político-policial mantém a Argentina em suspense. Na chamada “rota do dinheiro K”, a Justiça fechou o cerco ao entorno da ex-presidente Cristina Kirchner e do seu marido, o também ex-presidente Néstor Kirchner, morto em 2010 – os dois governaram o país durante 12 anos. O homem-bomba nas investigações sobre a lavagem de dinheiro envolvendo o empresário kirchnerista Lázaro Báez, suposto testa de ferro do “casal K”, é o contador e também empresário Leonardo Fariña.
Fariña não só falou sobre Báez e os Kirchner. Também entregou à Justiça dados que mostrariam o manejo de fundos do empresário patagônico – Báez é da província de Santa Cruz, o reduto kirchnerista na Patagônia. Ainda contou que o empresário levava dinheiro vivo a um aeroporto no Uruguai para esconder valores obtidos em lavagens e vantagens concedidas nos contratos estatais, com propinas e superfaturamentos – e que lhe pedira “discrição”. O dinheiro era contabilizado por Fariña e pela financeira SGI, de Federico Elaskar, conhecida jocosamente como “La Rosadita” – em uma referência à Casa Rosada, sede do governo.
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Próximo dos Kirchner e parceiro deles em diversos empreendimentos, Báez é acusado de ser laranja dos ex- presidentes em negociações e transações ilegais. Teria conseguido US$ 800 milhões em obras públicas suspeitas de irregularidades sob os governos kirchneristas, com propinas e superfaturamentos. Também acabou preso.
A fortuna de Báez cresceu nos 12 anos de kirchnerismo, em especial na área da construção civil. Um dos contratos que ele celebrou com o “casal K”, porém, é o mais rumoroso: companhias do empresário alugaram quartos de hotéis que pertencem a ex-família presidencial, localizados na cidade de Calafate, na Patagônia. De acordo com investigações judiciais, os quartos jamais foram ocupados. A suposição é de que teriam sido utilizados como manobra para lavagem de dinheiro envolvendo os Kirchner – trata-se do “caso Hotesur” (Hotesur é o nome da sociedade que os Kirchner compraram para administrar sua rede de hotéis).
O analista político Nicolás Wiñazki diz que a prisão de Báez, em 5 de abril, tem um forte significado.
– Começa a palpitar em Santa Cruz o início do fim da impunidade do sócio de Néstor e Cristina Kirchner – diz.
Outro analista, Joaquín Morales Solá, faz uma indagação ampla:
– A Argentina está em meio a um megaprocesso judicial parecido com o escândalo italiano “mani pulite”? A comparação foi feita por um juiz. O fato é que as notícias sobre investigações da corrupção kirchnerista parecem desafiar a cada dia a capacidade de os argentinos se assombrarem.
Momento de desconfiança de toda a classe política
A Argentina vive momento atípico não apenas em razão das apurações sobre os Kirchner. O presidente Mauricio Macri, com quatro meses de governo, apareceu três vezes na lista do escândalo “Papéis do Panamá”, como sócio em paraíso fiscal. São episódios também rumorosos, que se somam ao fato de que o governo passa por confrontos com os sindicatos em razão dos altos aumentos tarifários (de 100% a 500%) e da onda de demissões, em especial no setor público. Macri é oponente e desafeto de Cristina.
Só que Macri está em início de mandato. Os Kirchner começam a prestar contas dos seus 12 anos. Enquanto Báez está preso em Buenos Aires, a polícia tem feito buscas nas suas propriedades em Santa Cruz. A suspeita é de que os bens localizados em seu nome, entre os quais há uma série de carros de luxo, sejam, na verdade, dos ex-presidentes. Fora do poder e com sua antiga base fraturada, o kirchnerismo deixa flancos para os adversários. Somente na cidade de Buenos Aires, foram apresentadas 2.160 denúncias de corrupção envolvendo funcionários dos governos entre 2003 e 2015. Contra Cristina, são 419 denúncias.
– A Justiça já está nos calcanhares dos Kirchner – diz Solá.
A imagem mais simbólica desses dias, que levou à organização de marchas contra a corrupção, é o vídeo em que Martín Báez, filho de Lázaro, aparece contando US$ 3,5 milhões. A cena se deu na sala de “La Rosadita” , em um prédio do bairro de Porto Madero no qual Cristina tem dois apartamentos. E o agravante é que a contagem de Martín ocorreu no momento em que a posse de dólares era restrita.
AMIGOS EM APUROS
LÁZARO BÁEZ
- Até 2003, quando Néstor Kirchner assumiu o poder e se iniciaram os 12 “anos K”, Báez, hoje dono da empreiteira Austral Construções e outras companhias, era funcionário do Banco de La Nación e do Banco de Santa Cruz, província governada por Kirchner antes de se tornar presidente. A criação da Austral ocorreu na mesma época, e a empresa ganhou várias concessões de obras públicas federais, em um valor aproximado de US$ 800 milhões.
RICARDO JAIME
- Testemunhas dizem que o ex-secretário de Transportes Ricardo Jaime (preso e mencionado nas investigações da Lava-Jato por suposta cobrança de propina à Odebrecht) carregava sacolas de dinheiro para Néstor Kirchner. Jaime seria o arrecadador em negócios efetuados por Báez. Foi o primeiro kirchnerista a ser preso por suposta compra de trens em mau estado e recebimento de propinas pagas por empresas espanholas e portuguesas.
JORGE OSCAR CHUECO
- Advogado de Lázaro Báez, Jorge Oscar Chueco se dizia deprimido, ameaçou se matar e se fechou num hotel em Encarnación, no Paraguai, usando o nome “Antonio Cubilla”. Era o homem mais procurado pela justiça argentina, de onde saíra em segredo. A polícia o encontrou no Paraguai e o entregou às autoridades argentinas. O nome de Chueco surgiu no depoimento de Fariña e é mais uma peça na investigação sobre “a rota do dinheiro K”.
A aparição de Cristina
No dia 13, a ex-presidente Cristina Kirchner estava convocada a depor ao juiz Claudio Bonadío. Chegou de Santa Cruz, mas, em vez de depor, armou um palanque para milhares de seguidores. Bradou contra a Justiça, a mídia e o atual governo de Maurício Macri. Desferiu insultos contra Bonadío, a quem chamou de “extorsionista e pistoleiro” que teria “fabricado” o processo. Tudo na entrada do tribunal. Adotou a imagem de vítima e líder da oposição, após um trimestre inteiro de afastamento no seu recanto patagônico.
Para atingir Macri, ela fez referência ao “Papéis do Panamá”, dizendo que, “quando procuravam a rota do dinheiro K, encontraram o dinheiro M”. E continuou pedindo que imaginassem “se tivessem encontrado contas offshore” em seu nome ou de familiares seus – como ocorreu com o atual presidente.
Se fez um paralelo irônico com o atual presidente, Cristina também citou perseguições históricas para comparar seu caso a elas. Reportou-se a Hipólito Yrigoyen (alvo de um golpe militar em 1930) e Juan Domingo Perón (derrubado e posto no exílio em 1955). A ex-presidente disse ser vítima de “uma continuação dessas conspirações”.