A morte de um paciente nas dependências do Hospital Cristo Redentor (HCR), no dia 29 de março, trouxe à tona o temor vivido por trabalhadores da instituição, que estão tendo sua rotina laboral impactada pela criminalidade.
São funcionários que realizam suas atividades com medo de novos ataques a pacientes – e atribuem à fragilidade da segurança da instituição –, e que precisam contornar as situações de ameaças à integridade física e psicológica para continuar trabalhando.
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– Para nós, funcionários, o risco é uma bala perdida – destaca Valmor Guedes, presidente da Associação dos Servidores do Grupo Hospitalar Conceição (ASERGHC).
Desde 2013 até hoje, de acordo com a ASERGHC, pelo menos 20 agressões físicas sofridas por funcionários nas dependências do hospital foram registradas como acidente de trabalho. No mesmo período, sete trabalhadores que viveram situações de extremo risco – como foi o episódio da morte de Éverton Cunha Gonçalves, 25 anos, vitimado por dois tiros na cabeça num dos quartos do terceiro andar do HCR, no dia 29 de março – comunicaram acidente de trabalho que foi identificado como trauma psicológico.
– Se eu não tomar a medicação, eu não trabalho. O medo é muito grande.
A partir deste relato de uma técnica de enfermagem que atua no HCR há mais de duas décadas e pediu para ter a identidade preservada, surgem dramas como o de trabalhadores que são obrigados a conviver com pacientes fazendo uso de drogas ilícitas nos quartos, que chegam a desempenhar suas tarefas diante de seguranças particulares armados para proteger líderes de facções criminosas internados no Cristo e precisam compactuar com condutas questionáveis porque temem que as ameaças sejam cumpridas.
– Precisa mais pessoas serem mortas para fazerem alguma coisa? Precisa a gente se expor? A UTI tem 29 leitos, uns 20 pelo menos são ocupados por pacientes com ferimentos por arma de fogo. A gente trabalha em constante aflição. Eu estou com medo. Trabalhar aqui está sendo bem difícil com essa violência – relata outra técnica de enfermagem que trabalha há quatro anos no hospital.
O Diário Gaúcho ouviu quatro trabalhadores e teve acesso a documentos que comprovam os pedidos de providências levados à gerência do hospital desde 2014. Numa das correspondências, de julho daquele ano, a Comissão Interna de Prevenção de Acidentes de Trabalho (Cipa) denunciava o "uso de arma de fogo, ameaças de agressão e constrangimento, assédio sexual, relatos de tráfico e consumo de drogas ilícitas". Em 2015, outro documento foi entregue pela Cipa à direção do hospital dizendo que "pacientes e acompanhantes chegam a ameaçar a integridade física" dos trabalhadores, gerando até afastamentos do trabalho.
"Tu não sabe o que vai acontecer naquele plantão"
Sempre que percebe alguém estranho ao andar fora do horário de visita, a técnica de enfermagem que soma mais de duas décadas trabalhadas no Hospital Cristo Redentor (HCR) fica apavorada. Ela relata a rotina de medo vivida por ela e pelos colegas.
O começo do terror
Desde que foi arrolada como testemunha de uma tentativa de homicídio dentro da instituição, em agosto de 2013, o pânico passou a fazer parte da rotina da técnica de enfermagem. Mesmo dizendo não ter visto os disparos, ela teve de prestar depoimento.
– Eu entrei em parafuso. O que essas gangues fazem? Eliminam quem é testemunha. E me colocaram como testemunha de um homicídio qualificado. Fui pedir ajuda do hospital e o hospital disse que não tinha nada a ver com isso. Me deu pânico, eu não queria mais ir trabalhar, me encaminharam para psicóloga, psiquiatra. Aí, num domingo, mataram no (quarto) 426, leito 2, aí viram que eu tinha razão.
O Diário Gaúcho noticiou
Em agosto de 2013, Tiago Diogo Gonçalves, o Tiaguinho, 27 anos, foi baleado em casa, na Vila Respeito, Bairro Sarandi, e levado ao Cristo Redentor. Enquanto se recuperava de tiros no peito e na barriga, foi atingido nas pernas, na emergência, por disparos feitos por um homem que invadiu o local. Tiaguinho morreu numa terceira investida contra ele, na rua, quando foi baleado na cabeça. Chegou a receber atendimento no HCR, mas não resistiu. Na ocasião, a companheira dele, grávida de sete meses, foi atingida por um tiro no ombro.
As facções
– Quando o paciente chega e é de uma facção, eles falam. Os chefões (do tráfico) pagam segurança. Nós trabalhamos várias vezes com o cara de braços cruzados, do lado da cama e com o revólver na cintura. Eles trocavam o plantão às 2h, subia outro segurança, porque eles não sentavam nem dormiam, ficavam sempre ali do lado. Teve uma vez, um de Guaíba, que tava com segurança, chamou a enfermeira e disse: "me tira daqui ou me dá alta porque eu não quero machucar vocês. Chegou um cara aí (no hospital) que tava junto quando atiraram em mim". E aí, o que acontece? As enfermeiras mesmo escondem o paciente, colocam fora de área, para não acontecer isso. A direção tem conhecimento. Já pedimos todas as vezes, e vai dar mais mortes lá. O segurança coloca a poltrona de acompanhante na porta e, quando tu chega, tem que bater para entrar. Eles estão ameaçados lá dentro, sabem que vão vir para terminar o serviço.
Uso de drogas
– Eu não tenho mais condições de trabalhar. Não tenho mais ânimo. Tu não sabe o que vai acontecer naquele plantão. Ameaças é (sic) direto. Os nossos pacientes são aqueles que são presos hoje e, amanhã, são soltos. Estão na droga, são traficantes. Aí, chega na madrugada, eles passam da droga para a morfina, que é uma droga também. Os bem viciados, eles querem morfina, querem mais. Passam a noite toda chamando, incomodando, pedindo mais morfina. Eles ameaçam. E não ameaçam só a mim, ameaçam a enfermeira do plantão, qualquer pessoa que chegar na frente deles. As ameaças ocorrem direto.
– A droga entra nas bolsas das esposas, namoradas. Os familiares levam dentro das bolsas, que não podem ser revistadas. O médico autoriza o acompanhante. Dependendo do médico, conseguem o papel de acompanhante, aí entra o familiar e o segurança. E como é que tu vai provar que não é familiar?
Tráfico
– Um vez, há dois anos, no quarto 427, o cara tava deitado e disse assim: "manda mais (droga). Só na hora da visita, faturei 200 contos". Tava um cheiro de maconha e de crack naquele quarto que não dava para trabalhar. Eu fui lá na enfermeira e disse que não ia entrar naquele quarto, aí ela foi lá. No ano passado, a enfermeira teve que chamar a polícia porque eles estavam com cachimbo de crack até em cima do bidê. Mas, hoje, tráfico, ali dentro, não tem.
– Eles se agrupam nos lugares para fumar droga. Eles fumam e depois vêm e fazem a morfina. Aí, enlouquecem de vez. Por tudo isso a gente passa. Há 15, 20 dias, eles iam num quarto vazio e se juntavam para fumar, era um fedorão de maconha. Tem familiar que traz. Como é que a gente vai entrar para impedir? A gente até chama a segurança. Como é que eles vão bater de frente com este tipo de gente? Eles (os pacientes) ficam no meio de gente que não tem nada a ver com isso. Tem um quarto que tem seis leitos. Tem de quatro e de três (leitos). Só que, quando é muito perigoso, fazem o que a direção diz que é seguro, que é colocar num quarto sozinho. Tem um Bala na Cara que está sozinho agora, ele se tranca no quarto, coloca uma tábua na porta. Para nós entrarmos, temos que bater.
– Uma vez o paciente ganhou alta e não queria ir embora. Ele não queria ir e chamou toda a gangue dele para a frente do Cristo. Eles não tinham que ter visita toda hora e telefone, porque eles se comunicam. Neste caso, os que levaram tiro não podem voltar para o local onde foram baleados. Quando ganham alta, têm que arrumar um local, o que demora de dois a três dias para poderem ir embora, isso é praxe. É muito triste. Chegou a uma situação em que o respeito não existe mais.
Assédio
– Comigo nunca aconteceu. (Acontece) mais com a turma de gurias novas (técnicas de enfermagem) que entraram. Teve um caso em que o paciente já tinha tirado o dreno de tórax, estava caminhando, foi no banheiro, voltou e apertou a campainha: "podem me dar banho, não tô a fim de tomar banho sozinho". Eles se prevalecem muito com as meninas novas. Muitas delas são temporárias e acham que, se fizerem um bom serviço, vão continuar aqui. E, geralmente, eles querem abusar mesmo. Não existe um domínio.
O medo e a medicação
– Se eu não tomar a medicação, eu não trabalho. O medo é muito grande. Eu só consigo dormir por causa da medicação. Eles ainda estão deixando visita entrar de noite. A portaria é terceirizada e é muito frágil, então entra visitante à noite, e o pior, sem avisar. Se eu vejo alguém diferente, já entro em pânico. É uma tortura, e não é só eu que fico assim, é todo mundo. Semana passada, às 20h30min, tinha uma mulher batendo na porta. Eu não deixei ela entrar, ela fez a volta e entrou por uma outra escada. A enfermeira chamou a segurança para tirar ela de lá. Atrapalha muito o meu trabalho. Para tirar (aplicar) a medicação, tu tem que estar bem tranquila. Nós tivemos um que ficou três meses conosco, e era bem tranquilo. No último dia, ia ter alta, e chegou a Polícia Federal, dizendo que ele era o maior traficante. Como é que a gente não vai se cuidar de todos? Eles dão nome errado. Tem que estar sempre se cuidando, é horrível. Teriam que ter uma ala só para essa gente.
Faltam registros
– O pessoal tem medo. Eu fui, registrei (caso de 2013, dos tiros disparados dentro do hospital) e fui chamada como testemunha. Ninguém quer registrar de medo, aí eles botam o teu endereço. O pessoal tem medo, não quer falar. Pelo menos três colegas já se afastaram por pânico. O estresse, o medo, dão um dano na cabeça da gente. Eu tenho medo, a enfermeira tem medo, o segurança tem medo. E eles (os pacientes) debocham.
Colegas fazem coro
– A ameaça acontece direto, vindo de paciente e de familiar. A paciente era uma traficante que queria tomar água, mas não podia porque tinha eviscerações no intestino. Eu disse que não poderia dar e ela falou "tu tem filhos? Então tu zela pelos teus filhos porque eu vou sair daqui". É esta constante ameaça. E aqui eles não te dão nenhum suporte psicológico – disse outra técnica de enfermagem.
Um trabalhador da área administrativa concorda.
– A gente lida com coisas bem negativas. Tem que ter uma cabeça boa e um jogo de cintura muito bom para aguentar. Tem muita gente aqui que entra em depressão. E não tem tratamento.
– Antes, respeitavam os hospitais, era uma zona de trégua. Agora, a marginalidade está tão grande que sociedade perdeu essa noção. É o fim – lamenta uma funcionária da área administrativa.
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Medo gera falta de registros
O medo pode ser a explicação para a falta de registros policiais das ameaças e agressões aos funcionários. Conforme o titular da 9ªDP, delegado Alexandre Vieira, que responde pela área do Cristo Redentor, nos últimos seis anos apenas três casos foram registrados e, ainda assim, não se enquadram nas descrições feitas pelos trabalhadores – um era uma desavença entre funcionários, outro dava conta de tiros na área externa da instituição e o último de um paciente que reclamou da demora no atendimento e perdeu o controle diante do médico.
– Os funcionários fazem a ocorrência policial, mas não pedem representação contra quem agrediu porque têm medo de encontrar com eles no fórum – destaca Valmor, presidente da ASERGHC.
Em relação aos relatos de tráfico de drogas, o delegado Mário Souza, do Denarc, afirma que não chegou notificação oficial ao departamento, nem mesmo denúncia anônima.
Comunicação de acidentes de trabalho
2013
Seis agressões físicas*
2014
Nove agressões físicas*, duas agressões verbais, quatro traumas psicológicos**
2015
Cinco agressões físicas* e uma agressão verbal
2016
Até o momento, foram registrados três ocorrências de traumas psicológicos**
* Mordidas, chutes, arranhões, socos, empurrões.
** Após situação de extremo risco (assassinato de paciente, por exemplo), ou ameaça à vida e integridade física do trabalhador, que não pode continuar desempenhando suas atividades laborais.
Toda agressão física é acidente de trabalho
De acordo com a Seção de Segurança e Saúde no Trabalho (Segur) da Superintendência Regional do Trabalho e Emprego, qualquer tipo de agressão física sofrida pelo funcionário em seu local de trabalho, por terceiros ou por colegas, é considerada acidente de trabalho. Agressão verbal não é acidente de trabalho.
A emissão de Comunicado de Acidente de Trabalho (Cat) pode ser feita pelo empregador, pelo sindicato ou até mesmo pelo próprio trabalhador. O objetivo é comunicar para fins de estatísticas e, no caso de o trabalhador ficar afastado das atividades por mais de 15 dias, ter garantida a estabilidade de um ano a contar da data do ocorrido.
A comunicação é feita por meio eletrônico, no site da Previdência Social, ou encaminhada numa agência do INSS. O trabalhador agredido passa pela avaliação de um médico (indicado pela empresa ou por quem emitiu a Cat, preferencialmente o médico do trabalho), que informa a Cid (Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde) e avalia o trabalhador agredido para definir a incapacidade ou não.
No caso de afastamento, o trabalhador recebe o auxílio-doença acidentário. Nestes casos, o perito do INSS faz uma avaliação posterior do nexo entre o acidente e a doença ou lesão do trabalhador, quando ficar mais de 15 dias afastado.
Trabalhadores fizeram pedidos de melhorias
No dia 30 de março, dia sguinte ao homicídio cometido dentro do hospital, os trabalhadores do HCR se reuniram e fizeram solicitações à direção: restrição ao número de visitantes e acompanhantes, solicitação da presença da Brigada Militar com uma viatura permanente em frente ao Hospital Cristo Redentor, instalação de detectores de metal e raio-X, eliminação do acesso do público ao banheiro da emergência do HCR, aumento efetivo de vigilantes, contratando aprovados em concurso. Um grupo de trabalho foi criado para discussão de melhorias do Plano de Segurança criado em 2014.
O que diz a direção do Hospital Cristo Redentor
Por meio de sua assessoria de imprensa, o Hospital Cristo Redentor informa que "os recentes episódios, passíveis de ocorrer em outros hospitais, obrigaram a adoção de medidas complementares de reforço na vigilância e no acesso às dependências".
Entre as medidas, os horários de visitação aos pacientes foram diferenciados por unidade, com a finalidade de reduzir o fluxo de pacientes em um único período, facilitando o controle. Também foi reduzido o número de visitantes aos pacientes para dois por dia, além do reforço do registro de identificação com apresentação de documento de identidade. Também está sendo ampliado o número de câmeras para o monitoramento de corredores e acessos, além da instalação de catracas eletrônicas na recepção.
As unidades de internação foram isoladas com a instalação de portas com aceso específico por cartão e reforço na vigilância dos andares e nos pontos de acesso, com funcionários próprios. A entrada de funcionários já foi redirecionada para locais específicos e exclusivos. Segundo o hospital, "em nenhuma hipótese a presença de seguranças privados armados ou desarmados é permitida". Pacientes vítimas de ferimento por arma de fogo ou por arma branca são inseridos em Protocolo de Segurança específico, com registro em posto policial existente no Hospital, monitorados por segurança, com controle restrito no acesso a visitas e, eventualmente, alocados em quarto único.
O hospital admite que os efeitos da violência são sentidos pelos funcionários e que o Grupo Hospital Conceição, a que o Cristo pertence, conta com uma estrutura em saúde do trabalhador para amparar os funcionários. O hospital afirma que o consumo de medicações controladas é regrado por prescrição médica.