O dito popular de que o parlamento é o espelho da sociedade não é confirmado pelos números no Brasil. A Câmara dos Deputados é muito mais velha, branca e menos feminina do que a população nacional. Por isso, nem sempre o legislativo dá prioridade aos temas considerados relevantes pelos setores sociais sub-representados na Casa.
A composição monolítica do plenário pode ser resumida na figura de um parlamentar homem, branco e com 49 anos – idade média dos 513 eleitos na legislatura atual. É um retrato da elite econômica nacional, mas está longe de refletir a diversidade brasileira.
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O abismo mais profundo entre a composição da chamada Casa do Povo e o povo que ela tem a missão de representar é de gênero: enquanto mais da metade dos brasileiros são mulheres, na Câmara elas ocupam míseros 10% das cadeiras. Em razão disso, segundo a coordenadora do Coletivo Feminino Plural, Telia Negrão, as mulheres não conseguem fazer avançar propostas de seu interesse em Brasília. Pelo contrário.
– Há cerca de 30 projetos em tramitação na Câmara que ameaçam direitos femininos em áreas como sexualidade, reprodução ou combate à violência. Somos afetadas pela falta de representação e pelo crescimento das bancadas religiosas – diz Telia.
Ela também coordena o Projeto Mulheres Cidadãs que Podem, dedicado a preparar candidatas para disputar eleições. Negros e pardos também têm menos representatividade: são 50,9% nas ruas, mas apenas 20% nos corredores da Câmara.
Imagem da falta de interesse político
Essas divergências refletem as desigualdades de oportunidade na sociedade brasileira, na qual as mulheres têm rendimentos médios inferiores aos dos homens, por exemplo, e negros têm menos acesso ao Ensino Superior.
O cientista político Murillo de Aragão vê na defasagem de representação ainda outras causas:
– O Congresso é o espelho do interesse político da sociedade. Não é fiel representação da qualidade da nossa sociedade ou extrato das nossas elites. É o que temos frente aos que querem participar da política. Vale lembrar Platão: quem não gosta de política vai ser governado pelos que gostam.
Fragmentação do parlamento fortalece bancadas informais
As 53 invocações a Deus (incluíndo as palavras Senhor e Ele) feitas durante a sessão de impeachment na Câmara não são obra do acaso. Embora a administração pública seja laica, o crescimento da bancada evangélica é um indício de que a Bíblia disputa cada vez mais espaço com a Constituição como livro-guia do parlamento brasileiro.
De 32 deputados em 2006, a ala evangélica saltou para 70 representantes em 2010 e atingiu o recorde de 75 nomes na atual legislatura – incluindo figuras-chave como o presidente da Casa, Eduardo Cunha (PMDB-RJ). Religioso assumido, o deputado é dono da empresa Jesus.Com, em nome da qual possui uma frota de carros de luxo. Esse fenômeno revela outra peculiaridade: a consolidação de bancadas que combinam parlamentares de diferentes filiações em prol de causas comuns como religião, segurança ou agronegócio. Para o cientista político Rubem Barboza, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), essas junções informais são fruto do número excessivo de partidos e acabam por fragilizá-los ao promover e defender pautas próprias. Hoje, há deputados de 25 siglas diferentes na Câmara.
– O surgimento dessas bancadas é uma tentativa do próprio Congresso de controlar sua fragmentação interna. Os interesses defendidos por elas devem estar representados, mas não em um sistema que solapa os partidos e os transforma apenas em instrumentos de eleição – afirma o cientista político.
Além do evangélico, o Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar identifica outros seis grupos principais no plenário: empresarial, ruralista, sindical, feminino e da segurança – também conhecido como "da bala", ao qual pertence o polêmico Jair Bolsonaro (PSC-RJ). Após homenagear o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra em seu voto domingo passado, o parlamentar foi alvo de mais de 17 mil denúncias feitas à Procuradoria-geral da República.
Proliferação de siglas estimula alianças internas, diz especialista
A agremiação mais numerosa é a empresarial (não apenas empresários), que reúnem pelo menos 221 nomes. Na sequência, aparece a dos parentes. Nada menos do que 211 deputados, o equivalente a 41% do total, são familiares de políticos e, não raro, herdam currais eleitorais de pais, tios, avôs e outros consanguíneos. Já a bancada sindical, que articula a defesa de direitos trabalhistas, despencou: caiu de 83 para 51 representantes.
Para Barboza, a proliferação de siglas que estimulam a formação de bancadas multipartidárias é outra distorção do atual sistema eleitoral brasileiro. Segundo o cientista político, a adoção de uma alternativa como o modelo distrital de votação (em que o candidato mais votado em uma região se elege) tenderia a manter dois ou três partidos fortes no país, e o distrital misto (em que parte dos candidatos se elege pelo voto majoritário, e parte pelo sistema proporcional), entre seis e oito siglas.
O presidencialismo de coalização sem limitação partidária também dificulta a governabilidade e promove a corrupção ao estimular barganhas e propinas a fim de unificar as dezenas de siglas em torno de determinada bandeira. Como resultado, o parlamento vira um balcão de negócios – o que ajuda a explicar o elevado índice de 53% de deputados citados em processos.