Rawan Okasha abre a cortina escura, os olhos grandes, delineados com lápis, analisando os dois andares do teatro lotado. Depois, começa algo que nenhum outra mulher faz em público aqui há quase uma década: cantar.
"A Palestina é do povo/E as casas que eles destroem", entoa, referindo-se às décadas de conflito com Israel, "serão reconstruídas graças à intifada".
As moças nas primeiras fileiras gritam. Os homens acompanham a letra.
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Porém, por todo o recinto, os monitores procuram qualquer coisa que possa ofender os membros silenciosos do Hamas, grupo islamita que controla Gaza e que permitiu, mesmo de má vontade, a realização da rara apresentação. A certa altura, têm que mandar os homens que começaram a dançar a dabke se sentar.
Entre as exigências do Ministério da Cultura: Okasha, 24 anos, deve ficar imóvel enquanto canta, vestir-se com decoro e só ter no repertório "músicas patriotas".
Usando um vestido tradicional bordado e o véu de cabeça combinando, a nova estrela de Gaza não pode enaltecer as desilusões amorosas, as festas ou qualquer outro tema. E é só nas canções folclóricas que o amor aparece, tímido.
– Estou pondo em prática o que me vai na alma. Sinto que tenho a responsabilidade de continuar cantando pelas mulheres da minha geração, afirmou a moça em uma das primeiras entrevistas.
Desde que assumiu o controle da Faixa de Gaza, há quase uma década, o Hamas tenta, aos trancos e barrancos, acabar com as manifestações culturais que seus líderes consideram escandalosas ou ocidentais demais, geralmente negando-lhes a permissão necessária para a realização.
A versão de entretenimento musical do governo consiste, quase sempre, de grupos no estilo jogral de homens barbudos ou meninas vestidas com decoro, reunidos para cantar o Islã e a Palestina durante comemorações públicas.
Muitos palestinos se identificam com essas leis conservadoras: Mohammed Assaf, que se tornou uma das maiores estrelas da região depois de vencer o "Arab Idol", há pouco tempo admitiu não querer que sua irmã, também talentosa, cante em frente a uma plateia cheia de homens.
Nem sempre as coisas foram assim: houve uma trupe de ciganos dançarinos, nos anos 80; um grupo misto cantava na TV palestina na década de 90; o pai de Okasha, Mohammad-Atef Okasha, hoje com 60 anos, formou uma banda, em 2005, que, segundo ele, teve que acabar dois anos depois, quando o Hamas assumiu o poder.
De uns meses para cá, a liderança do Hamas vem discretamente afrouxando as regras para os moradores de Gaza, que há anos sofrem com as restrições de movimento impostas pelos vizinhos Israel e Egito, três décadas de guerra e os altos níveis de pobreza e desemprego.
Não faz muito tempo, as mulheres puderam andar de bicicleta em uma das principais vias da cidade sem que ninguém as impedisse; não houve objeções a um encontro de donos de cães em um parque, embora os islâmicos considerem o animal impuro e encarem sua propriedade como um ato ocidental.
E agora essa: Rawan Okasha e sua banda de dez integrantes, a Dawaween – gíria para "conversa à toa" – já se apresentaram quatro vezes desde novembro.
– Essa ideia de ter permissão para um concerto, um baile, para o teatro é muito recente, explica o empresário do grupo, Adel Abdul Rahman.
Okasha é a oitava de treze irmãos que cantam – conhecidos como Okasha 13. – Outras famílias produzem mártires, diz a mãe, Faiza, referindo-se aos palestinos que morrem atacando israelenses ou são mortos por eles. – Eu tenho artistas.
Os cinco rapazes são artistas pagos; já para as moças, fica mais difícil. A família ficou abalada com a reação causada pelo vídeo que a irmã de Rawan Okasha, Ranin, hoje com 31 anos, lançou há uma década, quando ainda vivia no Cairo, visto por milhões de pessoas.
Era bastante recatado pelos padrões picantes dos vídeos de música árabe, com Ranin posando em belas roupas e dançando um pouquinho, mas escandalizou a conservadora Faixa de Gaza, onde a população chegou a questionar como o marido da garota – Abdul Rahman, hoje empresário da irmã – permitira um comportamento tão vulgar. Arrasada, Ranin desistiu de cantar quando o casal voltou para Gaza. E passou a usar o lenço de cabeça.
Só que Rawan Okasha queria se apresentar; então, dessa vez, a família procurou criar algo que contasse com a aprovação do Hamas. – Nós nos preparamos para o desafio, afirma o pai.
Samir Mutair, vice-secretário do Ministério da Cultura de Gaza, conta que um comitê foi formado para discutir a proposta. A banda concordou com as inúmeras condições e em manter o clima discreto.
Em um ensaio de última hora, Abdul Rahman gritou "Crise!" ao notar as palavras "Tel Aviv" na faixa pendurada atrás do palco que mostrava a imagem de uma oliveira, cujos galhos eram formados a partir dos nomes das cidades que os palestinos consideram sua pátria. Nenhum nome judaico-israelense deveria estar ali, de acordo com a promessa implacável do Hamas de tirá-las do mapa. Um fotógrafo, munido de um marcador de texto, alterou os arabescos da caligrafia, transformando "Tel Aviv" em "Tel al-Rabi", que significa "Colina da Primavera".
– Melhor dar outra olhada. Vai que tem outro nome de assentamento judeu, aconselha um ajudante de palco.
Okasha, que está grávida e já tem um filho pequeno, permaneceu sentada em um banquinho nos bastidores, esperando o interlúdio musical, para depois seguir em direção ao público cantando um poema de Ahmad Dahbour, "Filhos da Palestina".
Mumin Qreiqei, 28 anos, perdeu as duas pernas, em 2008, na guerra entre o Hamas e Israel; ele aproxima a cadeira de rodas do palco para tirar fotos. Para a farmacêutica Layla Hassouna, a cantora "é muito corajosa".
Ali perto, Ahmad Al-Naouq, estudante de Literatura, se confessa confuso. – Eu adoro, mas nunca deixaria minha irmã cantar na frente de tantos homens.
Para Samar al-Shawa, 56 anos, Okasha tem uma voz linda, que a faz se lembrar de como era Gaza antigamente.
A amiga, Ahmed Ibrahim, 35 anos, refletindo sobre a polêmica de uma mulher cantando, exclama: – O pessoal daqui acha que os problemas que enfrenta são causados pela ocupação israelense; não é isso, não. É porque vivem numa cultura ultrapassada, de cem anos atrás.
A música recomeça. Okasha levanta a mão para criar um efeito dramático, olha para o público e começa a cantar um mawal, ou lamento árabe (sim, sobre amor):
– Dou ao pregador de boas novas um beijo nos olhos!/Meu cansaço desapareceu, um beijo nos olhos!/Meu cansaço desapareceu, oh, filho da minha tribo!
Do palco, os olhos da cantora de Gaza se encontram com os da irmã, Ranin, que viu a carreira musical implodir. Elas trocam sorrisos.