Antes se dizia que o brasileiro era um povo apático e despolitizado, em junho de 2013 gritaram que o "Gigante acordou", e agora assistimos a linchamentos morais nas redes e empurra-empurra nas ruas entre petistas e antipetistas. Cada grupo mais convencido de que sua versão sobre os escândalos de corrupção sob investigação carrega verdades absolutas e inquestionáveis. De um lado, o ex-presidente Lula é pintado como mocinho inocente perseguido pela direita e pela mídia golpista, que não se conformariam com suas raízes humildes e sua popularidade. No outro, é execrado como vilão que roubou a Nação e precisa ser exterminado junto com seu partido, se preciso com força militar, como se isso expurgasse toda corrupção da história do país.
Se há dúvidas quanto ao grau de politização dos manifestantes, num clima especialmente inflamado após a condução coercitiva do ex-presidente para prestar depoimento na Operação Lava-Jato, uma questão preocupa analistas de diferentes vertentes: até onde essa polarização pode chegar?
– Até então o discurso era de ódio, agora é de violência. Há um abandono da palavra como recurso político, virou acerto de contas na rua – observa o professor Fábio Malini, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo.
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Especialista em análise de redes, Malini contabilizou mais de 2 milhões de menções ao presidente Lula na última semana no Twitter em português, desde que foi alvo da operação da Polícia Federal. Em novembro as menções a Lula não passavam de 40 mil por semana, chegando a 200 mil em janeiro.
– A internet provoca ansiedade, é como se todo mundo estivesse ansioso pela velocidade das publicações. É uma taquicardia o que a gente está vivendo. Mas é um slack ativismo, um ativismo preguiçoso. É uma guerra de likes – diz Malini.
Na avaliação do especialista, o binarismo interessa aos dois lados. Grupos do PT tentam engajar sua militância e constranger opositores até com a ameaça de um enfrentamento físico, buscando desencorajar manifestantes a saírem para as ruas. Os movimentos à direita aproveitam o clima para radicalizar o discurso e conquistar adeptos antipetistas, com vistas ao impeachment da presidente Dilma Rousseff.
Redes sociais reforçam visões mais radicais e aceleram acirramento
O clamor das redes eleva a disputa, que vai contaminar as próximas eleições, mas as diferenças que separam os dois lados podem não ser tão acentuadas como parecem. Pelo menos do ponto de vista ideológico. Ao pesquisar a literatura internacional sobre o fenômeno, o escritor e jornalista de ciência Carlos Orsi encontrou dados que ajudam a iluminar também o quadro nacional. No estudo norte-americano Affect, Not Ideology: A Social Identity Perspective on Polarization, publicado em 2013 no periódico Public Opinion Quarterly, os autores mostram que o que efetivamente polariza são as emoções, não as diferenças ideológicas. Com falta de clareza sobre projetos partidários, eleitores tendem a personalizar sentimentos de amor ou raiva. Orsi lembra que outros estudos acadêmicos indicam que, quando um grupo de pessoas com opiniões moderadas, mas convergentes, se reúne para conversar, tende a sair com visões mais radicais. Por isso, ambientes que reforçam nichos, como o Facebook, são canais que aceleram o acirramento.
– As pessoas vão se radicalizando quando limitam seu leque de fontes. São movidas por ódio, seja a Lula, seja a (José) Serra. Mas, se compararmos os programas políticos dos dois quando disputaram a Presidência (em 2002), o de Serra era até mais à esquerda do que o de Lula. As pessoas encaram o confronto simbólico como se fosse mais fundamental do que a discussão em si – observa Orsi.
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Para analistas, parte desse simbolismo é alimentada pelo próprio Lula, com seu discurso do "nós contra eles", do "povo contra a elite branca". Após a condução coercitiva, quando muitos esperavam que ele pudesse dar explicações públicas sobre as acusações de recebimento de vantagens, usou o pronunciamento para atacar seus opositores e lembrar sua origem pobre, reforçando a trajetória de superação do ex-metalúrgico que passou fome na infância. Segundo o cientista político francês Stéphane Monclaire, professor da Universidade de Sorbone, Lula tentava reeditar o discurso que o ajudou a superar o escândalo do mensalão, em 2005.
– Naquela época, o (marqueteiro) João Santana fez pesquisas e viu que as pessoas pobres se identificavam tanto com Lula que consideravam que atacá-lo era atacar elas mesmas. Consideravam o Lula quase como Papai Noel, que dava presentes, e se sentiam no dever de mostrar reconhecimento com o voto. Hoje, o benefício do Bolsa Família não é mais visto como presente, mas direito adquirido. Aumentou o nível de instrução, as pessoas estão mais informadas. Tenho dúvida de quantos vão responder ao chamado – reflete, definindo o cenário atual mais como "ameaça de polarização" do que de "polarização forte".
Para Frei Betto, autor de dois livros sobre os governos do PT, A Mosca Azul e Calendário do Poder, seria por falta de politização da nação ("mais de consumistas do que de cidadãos") que o debate político migrou do racional para o emocional.
– Quem discute em torno de propostas políticas para o país? Como elas não existem, nem da parte do governo, nem da oposição, fica-se na ofensa pessoal, no panelaço, no bate-boca de comadres. Temo que esse clima emotivo crie o caldo de cultura que faça o Brasil se encaminhar do Estado de Direito para o Estado da Direita – diz.
Temendo confrontos neste domingo, quando manifestantes pró-impeachment programam lotar as ruas, a maioria dos movimentos de esquerda que prometeu confrontá-los recuou. Ainda assim, em Porto Alegre, os dois lados terão atos simultâneos. O advogado e cientista político Murillo de Aragão, presidente da Arko Advice Pesquisas e Análise Política, prevê atritos, mas espera que as autoridades possam conter os ânimos:
– O que vai arbitrar o futuro da divisão é o andamento das investigações da Lava-Jato e do impeachment. À medida que as evidências se tornarem mais palpitantes, poderemos ter mais radicalização. Pelo menos, inicialmente. Depois haverá acomodação. O certo é que a Lava-Jato e o fracasso econômico do governo são os verdadeiros inimigos dos grupos que apoiam Lula e o PT. O inimigo não está na oposição.
A Associação Riograndense de Imprensa (ARI) emitiu nota repudiando agressões a jornalistas. "A ARI deseja que os partidários das diferentes posições políticas se manifestem de forma democrática e pacífica nas ruas e praças do Brasil, com garantia de plena liberdade de expressão, preservando a cidadania e o respeito ao patrimônio e à vida dos brasileiros", diz o texto.
Apesar dos humores ácidos, o antropólogo Roberto DaMatta não crê em confronto aberto nas ruas, lembrando que o Brasil não tem tradição de briga.
– A gente adora um bate-boca, mas não vai além disso. Passamos de uma monarquia institucionalizada, cheia de barão, marquês, princesa, para uma república que continuou com o mesmo sistema de maneira disfarçada. Você tem alguma dúvida que os senadores sejam barões e os juízes marqueses? Não tenho. Acho que esse é o problema – reflete.
José de Souza Martins, professor de sociologia da USP e autor do livro Do PT das Lutas Sociais ao PT do Poder, vislumbra o perigo de radicalização.
– Se os grupos que se opõem ao PT engolirem a isca, poderemos chegar a extremos sem retorno. Parece-me que os alucinados que radicalizam essa polarização sem conteúdo estão apostando na possibilidade de ferir as instituições. O Brasil tem tido crescente presença de multidões na rua e multidões violentas, como as que lincham e fazem justiça com as próprias mãos. Para que se manifestem falta pouco – alerta Martins, que também estuda fenômenos de linchamentos.
Ao mesmo tempo em que se preocupam com extremismos, especialistas avaliam que os avanços nas investigações trazem conquistas para o país, como fim da sensação de impunidade e maior clamor por ética. Mesmo diante de um quadro de incertezas, DaMatta ressalta que chegamos à crise do "você sabe com quem está falando?", que pode nos levar à maior igualdade:
– A ideologia igualitária, que contraditoriamente cresceu com contribuição do próprio PT, leva à ideia de que todos somos iguais perante a lei. Isso gera maior conflito, porque então todos temos direito de opinar, de acusar e se defender. Mas não é ódio, é a diversidade. O Brasil já passou por coisas piores.
Mobilização para manifestações passa pelas redes sociais
Uma análise feita pelo professor Fábio Malini, coordenador do Laboratório de Estudos sobre Imagem e Cibercultura (Labic) da Universidade Federal do Espírito Santo, mostra o comportamento das redes em relação às manifestações agendadas para este domingo: entre 4 e 11 de março, foram 160.784 tweets comentando os protestos, gerados por 26.799 usuários.
Embora expressivo, o número é menor do que o registrado no mesmo período do ano passado: às vésperas da manifestação pró-impeachment de 15 de março de 2015, foram contabilizados 492.223 tweets com referências às manifestações, gerados por 72498 perfis. Desse total, a maioria dos comentários era de apoio às manifestações, com palavras-chave como "Fora Dilma", identificados em azul no mapa abaixo. Outros 5% foram produzidos por críticos alinhados com o governo federal, identificados em vermelho no mapa.
– Neste verão, os termos Lula (já registramos mais de 2 milhões de menções em uma semana somente em português), Marx e Hegel, Sergio Moro, Aécio Neves, Eduardo Cunha, Lava Jato, Dilma hegemonizam o debate. A questão é saber se essa conversação mais quente vai aquecer as manifestações. Por enquanto, a turma quer falar mais sobre esses personagens do que disputar os termos mais ligados às manifestações – oberva Malini.
Já a interação nas páginas dos organizadores dos protestos contra o governo federal indica um aumento de interações. Ao analisar o total de compartilhamentos no Facebook e no Twitter do Movimento Brasil Livre, do Vem Pra Rua Brasil, dos Revoltados Online e do PSDB, o Labic constatou um crescimento de 55%, passando de 2.270.955 para 2.934.121.