As manifestações de rua que recrudesceram nos últimos dias – acompanhando a velocidade das notícias que vêm de Brasília – desafiam analistas, que buscam compreendê-las no calor dos acontecimentos. Em uma situação de acirramento dos ânimos e crescente polarização ideológica, multidões saem às ruas em defesa de mudanças no status político do país. Mas aonde poderão levar os protestos? Os manifestantes conseguirão articular a insatisfação e a revolta na forma de uma nova visão de país?
Pablo Ortellado, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da USP, que estuda e acompanha presencialmente as manifestações de rua, observa que é preciso distinguir três componentes: os insatisfeitos, os mobilizados e as lideranças.
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– Os insatisfeitos estão espalhados pelas classes sociais e pelo Brasil. Há pessoas com baixa e alta escolaridade. Já a mobilização nas ruas está concentrada na classe média profissional. São pessoas com alta renda e escolaridade. Os líderes dos protestos não devem ser confundidos com os mobilizados. Em uma pesquisa que fizemos no ano passado, os mobilizados defendem o sistema de saúde e educação público, gratuito e universal. Isso está em desacordo com as lideranças, que são grupos ultraliberais e buscam a privatização disso – explica o professor.
Mais espontaneidade e comunicação imediata
Embora organizações como Vem pra Rua e Movimento Brasil Livre tenham um papel de proa, chama a atenção de estudiosos o caráter espontâneo das manifestações, estimuladas pelo imediatismo da comunicação pelas redes sociais. Na quarta-feira, pouco depois da nomeação do ex-presidente Lula para a Casa Civil, uma ampla mobilização se espalhou pelo país – em Porto Alegre, uma passeata saiu do Parque Moinhos de Vento e terminou no Palácio Piratini.
O professor do Departamento de Ciências Sociais da PUC-Rio Luiz Werneck Vianna interroga se a força das ruas será articulada em um projeto de efetiva transformação de um sistema político percebido como viciado e corrupto:
– Esses movimentos são refratários à política, aos políticos e partidos. Isso faz com que funcionem como instrumento de pressão poderoso, mas sem rumo.
Para Werneck, o contexto de insatisfação social e radicalização de parte a parte é "preocupante":
– O país está dividido. A classe média está dividida, os trabalhadores também. Uns apoiam o governo, outros se recusam a apoiá-lo. Isso é muito ruim. A divisão cria um clima de polarização.
O cientista político Fábio Wanderley Reis, professor emérito da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), acredita que "corremos o risco de sofrer consequências sérias e negativas pela frente" quanto ao "caráter odiento" do enfrentamento político. Uma partidarização teria contaminado importantes substratos sociais e institucionais.
Otimista com o potencial transformador das massas, o professor de ética e filosofia política da Unicamp Roberto Romano lembra que o Brasil viveu um hiato de mobilizações desde o impeachment de Collor aos protestos de 2013. Ele aponta a presença da internet como uma novidade na agitação atual:
– As pessoas não estão mais dispostas a voltar da manifestação para ficar em casa assistindo à TV. É uma massa cada vez mais exigente, que demanda uma mudança radical do Estado. Claro que isso não ocorrerá em pouco tempo, mas tende a acontecer.
Embora as redes sociais tenham se tornado a maneira mais rápida, eficiente e barata de convocar a população às ruas, seu impacto não está circunscrito à metade dos brasileiros que tem acesso à rede, na visão de Raquel Recuero, professora de Comunicação da UFRGS e da UCPel:
– O que é discutido na internet não fica apenas lá. As pessoas falam sobre isso nas ruas. O acesso a essas informações é pluralizado em diferentes classes sociais. Tudo isso chega muito mais longe do que a própria internet.