No lugar da alegria de experimentar as primeiras descobertas do mundo das letras, dezenas de alunos do primeiro na Capital estão conhecendo precocemente a dificuldade de acesso à escola. Alguns deles nem sequer chegaram perto da sala de aula neste início da vida escolar.
São estudantes que foram designados para instituições de ensino que ficam distantes da sua moradia, o que exige que atravessem comunidades do bairro a pé - há casos em que não há linhas de ônibus que atendam a necessidade - , driblando, por exemplo, a insegurança. Ou, mesmo tendo colégios a poucos metros da porta de casa, precisam que os pais sacrifiquem o trabalho, ou os irmãos percam minutos de aula para acompanhar essas crianças de seis ou sete anos, e garantir a presença delas na escola.
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Desde o início do ano letivo, a microrregião 4 do Conselho Tutelar, que atende o Bairro Partenon, recebeu pelo menos 40 pedidos de famílias de crianças do primeiro ano que não estão conseguindo vaga para os filhos perto de casa. Situações parecidas estão ocorrendo também na Lomba do Pinheiro, Restinga e Extremo Sul, além do Eixo Baltazar, na Zona Norte. O Estatuto da Criança e do Adolescente (Eca) garante o acesso à escola pública e gratuita próximo da residência do estudante. Não estando em sala de aula, a criança tem seu direito à educação violado.
Ao saber da designação para escolas distantes, as famílias procuraram a Central de Vagas, cuja responsabilidade é compartilhada por Estado e Município, a fim de fazer o ajuste. Mas foram informados de que havia vaga apenas naquelas instituições. Diante da dificuldade, procuraram o Conselho Tutelar, que requisitou a vaga às secretarias de Educação do Estado e/ou Município, sem sucesso. Com isso, o Conselho entrou com representação (reclamação feita ao Ministério Público) contra Estado e Município.
- Quem está sendo negligente e omisso é o Estado e o Município - afirma a conselheira Elenira Pereira.
Irmãos foram separados
Do portão da casa do pequeno Enzo Gonçalves Saraiva, seis anos, no Bairro São José, é possível avistar a fachada da Escola Estadual Dr. Martins Costa Jr., onde os irmãos Wesley, 15 anos, e Yuri, 12 anos, estudam. Pronto para cursar o primeiro ano do ensino fundamental, Enzo, no entanto, foi designado para a Escola Municipal América, que fica na Vila Vargas, longe de casa, e exige pelo menos 15 minutos de subidas e descidas. Mesmo que utilizasse o transporte público, a linha de ônibus ainda deixaria distante da escola, e o menino não poderia deslocar-se sozinho.
- Imagina em dia de chuva! A criança já chega desmotivada na escola - observa a mãe, a auxiliar de cozinha Thaís Ribeiro Gonçalves, 34 anos.
Na segunda-feira passada, uma semana depois do início do ano letivo, foi o primeiro dia de aula de Enzo. A mãe só pode levá-lo porque estava de folga.
- Ou eu fico desempregada para levar o Enzo no América, ou um dos irmãos dele perde o ano porque vai chegar atrasado na escola - analisa Thaís, acrescentando que o horário de trabalho do esposo também inviabiliza a tentativa de manter o caçula na Escola América.
- Eu só vou estudar uma vez (um dia) naquela escola. Eu vou para a escola dos meus irmãos - disse o menino.
De acordo com a família, a escola de educação infantil onde Enzo estudava no ano passado fez o encaminhamento para a Escola América, mas a família tentou trocar para um colégio mais próximo, sem sucesso.
O que diz a Central de Vagas
O aluno foi designado para a Escola Martins Costa Jr., mas perdeu o prazo de matrícula. Pelo sistema, há a vaga para o aluno na escola pretendida, mas para o turno da manhã, enquanto preferência é pelo turno da tarde. O caso será discutido pelo Conselho Tutelar com a Central de Vagas.
Thaís só pode levar Enzo à escola porque estava de folga
Fotos: Anderson Fetter/Agência RBS
De ônibus e sozinha, não
Na primeira semana de aula, enquanto estava sem serviço, o pedreiro Fernando Ribeiro de Araújo, 58 anos, ficou diante da Escola Estadual Maurício Sirotsky Sobrinho, para esperar pela saída da filha Fernanda Lohana Araújo, seis anos. Como a menina foi designada para a escola fora da região onde vive, o que exige o deslocamento de ônibus (e ela é pequena para andar sozinha), o pai decidiu esperá-la para economizar a passagem. Com nova ocupação, Fernando avalia estar ainda mais difícil garantir a ida da menina à escola, pois a mãe trabalha em dois empregos.
Segundo a família, Fernanda foi inscrita na Escola Municipal Deputado Marcírio Goulart Loureiro. Como opções, a família listou ainda a Escola Estadual Madre Maria Selima e o Instituto Paulo da Gama, mas nenhuma das alternativas foi atendida.
- Fica muito contramão essa escola (Maurício Sirotsky Sobrinho). Tem gente que não é de perto (da Marcírio Goulart Loureiro), mas foi mandado para cá porque tem turno integral. A prioridade tinha que ser para os que moram perto - afirma o pedreiro.
A família procurou a Central de Vagas, mas foi informada de que deveria procurar a escola pretendida somente em abril, para ver se acontece alguma desistência.
O que diz a Central de Vagas
A família observou todos os prazos mas, mesmo assim, a aluna não foi contemplada na primeira opção porque não havia vaga. Conforme o sistema, foi contemplada na segunda opção, que seria a Escola Estadual Açores.
A secretaria não soube explicar o porquê de Fernanda ter sido designada para a Escola Estadual Maurício Sirotsky Sobrinho, fora do zoneamento. A família será contatada pela secretaria.
Uma vaga de presente para Alysson
Fernando foi à escola pretendida, mas não tem vaga
Fotos: Anderson Fetter/Agência RBS
Para a mãe do pequeno Alysson Amaral Oliveira, o presente de aniversário de seis anos, na próxima segunda-feira, bem que poderia ser uma vaga na Escola Marcírio Goulart Loureiro, uma das opções mais próximas da casa dele. Outra alternativa seria a Escola Estadual Tenente Coronel Travassos Alves.
Enquanto isso não ocorre, o garoto está em casa, brincando com um caderninho velho, um lápis e alguns brinquedos, ao lado da irmã Kauane, três anos. Isso porque foi designado para a Escola Martins Costa Jr., inviável para que a mãe, a balconista desempregada Rita de Cássia Oliveira do Amaral, 34 anos, o leve à escola.
A ida da irmã mais velha de Alysson, Adriane, dez anos, já não é fácil para a mãe. A menina estuda na Escola Paulo da Gama, o que exige o deslocamento de ônibus, que ela garante com o cartão Vou à Escola.
- Eu levo e busco ela na parada. Boto ela no ônibus e fico com o coração na mão - diz a mãe, sobre a ida da filha sozinha.
Além do receio da perda do estímulo, pois o menino pergunta todos os dias quando a mãe comprará o material para que ele vá para a aula, Rita teme perder o benefício de R$ 390 do Bolsa Família, cujas condicionalidades inclui a frequência das crianças na escola.
- Eu pedi socorro no Conselho Tutelar. Levei um papel na secretaria, mas disseram que não tem vaga. Como é que uma criança vai ficar sem escola? E eu preciso trabalhar - desabafa a mãe.
O que diz a Central de Vagas
Não há registro da inscrição do menino no sistema. O caso será discutido pelo Conselho Tutelar com a Central de Vagas.
Casos serão analisados
Rita teme que o filho perca a motivação para os estudos
Fotos: Anderson Fetter/Agência RBS
De acordo com a promotora regional da Educação de Porto Alegre, Danielle Bolzan, a falta de dados atualizados em relação à população (o Censo mais recente é de 2010) dificulta a realização do planejamento das vagas.
Segundo ela, só a partir da demanda é possível identificar se deveriam ser previstas mais vagas para determinada série, por exemplo, porque a população no local é maior que a disponibilidade em cada escola. A migração das famílias e a violência nas comunidades também seriam obstáculos no processo.
A promotora esclarece que a responsabilidade pelo ensino fundamental é compartilhada entre Estado e Município. Nesta semana, em encontro envolvendo Ministério Público, Conselho Tutelar e as secretarias de Educação do Estado e Município, foram apresentados casos de crianças que não estão conseguindo vaga no primeiro ano em escolas perto de casa. Em algumas situações, as famílias perderam os prazos de matrícula. Em outras, há um limite de alunos por sala de aula, que não pode ser excedido, o que causaria a dificuldade de ajuste.
- O que não pode é essas crianças ficarem sem vaga. Talvez a escola diga que não tem vaga, mas a mantenedora do sistema (Estado e Município) tem que responder - afirma.
Do encontro, foi acertado que a partir desta quinta-feira cada microrregião do Conselho Tutelar será atendida pela Central de Vagas até o final da próxima semana para que cada caso seja analisado.
A partir disso, conforme a promotora, será possível verificar se o problema é a inexistência de oferta de vagas ou se as designações estão inadequadas. Eventualmente, se for observada a necessidade, é possível que sejam abertas turmas para atender esses estudantes.
Como funciona o sistema
A diretora do Departamento de Planejamento da Seduc, Iara Wortmann, explica que o sistema informatizado que distribui as vagas existe desde 1995. Em outubro do ano passado começou o processo de inscrições para este ano letivo. A partir de janeiro, o sistema apontou a designação de cada aluno. Havia prazos para confirmação da matrícula e também para eventuais ajustes, que foram realizados no mês de fevereiro. A dificuldade, segundo ela, deu-se em função de muitas famílias terem perdido os prazos. Neste caso, o sistema busca a vaga onde há disponibilidade e nem sempre consegue contemplar as opções listadas pelo aluno.
O atendimento pelo sistema informatizado privilegia a menor idade (alunos mais novos têm prioridade), com a tentativa de contemplar uma das três opções de escolas indicadas na inscrição (que podem não ser necessariamente perto da residência do aluno, pois as famílias têm a opção de escolha) e o zoneamento (o sistema localiza escolas mais próximas do endereço do aluno).
A partir do atendimento às microrregiões do Conselho Tutelar, Iara afirma que será possível verificar os pontos de estrangulamento e, eventualmente, discutir alguma alteração para melhorar o sistema que distribui as vagas.
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