Pertencente à terceira de quatro gerações de pescadores da família, Antônio Cabral Vasconcelos, 69 anos, da Ilha da Pintada, em Porto Alegre, viu-se detido numa fiscalização de rotina do Comando Ambiental da Brigada Militar, em 21 de março, enquanto exercia a função que aprendeu com o avô. Antônio não sabia, mas estava cometendo um crime ambiental: pescava bagre no estuário do Guaíba.
Um decreto estadual de 2014, que passou a ser executado no ano passado, inibe a pesca da espécie no Estado, considerada sob ameaça de extinção. Antônio foi autuado por pesca de espécie proibida e teve recolhidos cerca de 15 quilos de bagre. Outros três colegas dele também tiveram o mesmo destino.
– Para piorar a minha situação, na vistoria do barco e de tanto mexerem no gelo dos peixes, perdi os cerca de 400 quilos de piavas que seriam vendidos na Semana Santa. Meu prejuízo financeiro passou dos R$ 3 mil, mas o moral foi pior. Nunca tinha entrado numa delegacia – lamenta o pescador.
Na ação que desenvolveu-se no Guaíba, próximo às regiões de Belém Novo e Lami, o Comando Ambiental apreendeu 80 quilos de bagre e cinco mil metros de rede entre os quatro pescadores. Segundo o capitão Tiago Carvalho Almeida, as principais ações têm ocorrido no Litoral Norte, onde neste ano foram recolhidos 4,8 mil metros de rede, apreendidos 274 bagres e efetuadas 16 prisões pela pesca do bagre.
– É preciso entender que pescar bagre se tornou crime e que os pescadores estão sujeitos, inclusive, a perderem a carteira da profissão se forem reincidentes – alerta o capitão.
Pescador desde menino, o presidente da Colônia Z-5, com sede na Pintada, Vilmar Coelho, 68 anos, teme que a proibição acabe extinguindo também quem atua na profissão. Somente na Z-5 são 1,2 mil associados.
– O bagre entra na lagoa e no Guaíba no período do inverno e é um dos mais pescados na região. Tem pescador que se defende só com ele. Queremos uma pesquisa que nos ouça, que venha até aqui e nos acompanhe nas águas para mostrarmos que este peixe tem aos montes, e não está desaparecendo – diz.
Divisão
Assim como Valmir, os mais de 17 mil pescadores espalhados pelo Estado questionam a lei amparada em avaliação promovida pela Fundação Zoobotânica entre 2012 e 2013. O estudo, inclusive, divide opiniões dentro das próprias autarquias estaduais. Enquanto a Secretaria do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável, por meio da Fundação, sustenta a importância da lista contendo 353 espécies de peixes e da fauna em ameaça de extinção, a Secretaria do Desenvolvimento Rural, Pesca e Cooperativismo questiona a legitimidade de um estudo feito há quatro anos e sem ir à campo.
– Consideramos que ele está defasado. É preciso um estudo mais aprofundado para que possamos fazer um ordenamento pesqueiro. O estrago (a proibição) já está feito e vai causar um impacto forte nas comunidades ribeirinhas – afirma o diretor de Pesca da e Aquicultura da Secretaria, Ricardo Núncio.
Para um dos envolvidos na elaboração da chamada lista proibida, o ictiólogo Marco Azevedo, da Fundação Zoobotânica, o principal objetivo é definir prioridades de conservação e ter a meta de eliminar o risco de extinção. Desta forma, as espécies poderão sair das ameaçadas. O decreto não estipula o intervalo de tempo em que as reavaliações devem ser feitas.
– O bagre entrou na lista após constatar-se um declínio de 98% na produção nos últimos 40 anos na laguna dos Patos, segundo dados oficiais. A espécie sofre uma pressão de pesca muito intensa e a área da laguna abriga mais da metade da população brasileira de bagres – justifica.
Encontro discutirá a polêmica
Uma reunião marcada para quarta-feira, 14h, na Secretaria do Ambiente, pretende discutir a questão envolvendo a pesca de bagre no Estado. O encontro envolverá representantes das duas secretarias estaduais, da Fundação Zoobotânica, do Ibama, da Procuradoria Geral do Estado e da Universidade Federal de Santa Maria. De acordo com o diretor de Pesca da e Aquicultura da Secretaria, Ricardo Núncio, o principal objetivo será encontrar alternativas para o desenvolvimento de um novo estudo para apontar as espécies em extinção.
– Vamos propor que as compensações ambientais, assinadas com empresas em ampliação ou autuadas, sejam transformadas em novos estudos para atualizar a lista. Não podemos mais empurrar o problema com a barriga. Precisamos de uma solução – adianta Ricardo.
Consequências
Enquanto o decreto segue em vigor, pescadores temem as consequências. Na lida há 30 anos, Lindomar Viega, 53 anos, da Ilha da Pintada, calcula como pagará o empréstimo de R$ 10 mil, feito há dois anos via Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf). Parte do dinheiro foi usado, justamente, para fazer novas redes de pesca de bagre. Há três meses, temendo a fiscalização, Lindomar guarda em casa a rede de 50m com malha de 14cm.
– No inverno, 80% do peixe que eu pesco é bagre. No ano passado, peguei 500 quilos. Agora, não sei como vou me defender. Não queremos causar problemas no meio ambiente, mas precisamos de uma orientação – desabafa.
Entenda o caso
* O decreto estadual foi homologado em setembro de 2014, após discussão de dois anos envolvendo 129 especialistas de 40 instituições.
* A avaliação específica dos peixes contou com a participação de 38 especialistas, de 14 instituições de pesquisa.
* Nestes encontros foram debatidas as informações disponíveis sobre cada espécie avaliada.
* Não houve trabalho de campo específico para este estudo. O processo de avaliação de risco de extinção se propõe a reunir o melhor conjunto de pesquisadores especialistas e o melhor conjunto de dados disponíveis até o momento das avaliações.
* O processo de avaliação contou com um etapa de consulta pública, em que qualquer cidadão poderia visualizar as avaliações das espécies e propor avaliações alternativas.
* Foi analisado o risco de extinção de 1.583 espécies da fauna do Estado.
* 280 espécies da fauna se enquadraram em alguma categoria de ameaça de extinção: 22% dos mamíferos, 18% dos peixes de água doce, 16% dos anfíbios, 14% das aves e 11% dos répteis.
* 403 espécies de peixes foram avaliadas, sendo 325 de água doce, 45 de peixes ósseos marinhos e 33 de peixes cartilaginosos (tubarões e raias).
* 73 espécies foram enquadradas em alguma categoria de ameaça, sendo 40 de peixes de água doce, oito de peixes ósseos marinhos e 25 de cartilaginosos. Destas enquadradas, 38 (52%) são potencialmente de interesse para a pesca, como o bagre, o dourado e o surubim.
Fonte: Fundação Zoobotânica do RS