Um dos mais importantes cientistas sociais brasileiros,José de Souza Martins, 77 anos, acaba de lançar o livro Do PT das Lutas Sociais ao PT do Poder (Editora Contexto).
Professor aposentado de Sociologia na Universidade de São Paulo (USP), ele analisa na obra os rumos do partido desde o surgimento, nos braços da Igreja Católica, buscando entender no que a sigla se transformou após mais de uma década de exercício contínuo de poder.
Em entrevista por e-mail, o sociólogo que já ocupou a prestigiada Cátedra Simón Bolívar da Universidade de Cambridge, na Inglaterra (pela qual também passaram Celso Furtado e o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso), fala sobre a obra e sobre os desdobramentos da crise política.
Assistimos a uma crescente polarização no país entre grupos a favor e contra Lula e o PT, mas o senhor sustenta em seu livro que esquerda e direita não existem no Brasil, e que o PT seria um partido conservador. O que explica isso? Qual a base da atual dicotomia que divide o país?
Eu não disse que o PT é um partido conservador. O que eu disse é que uma facção decisiva do PT, aquela originada da opção petista de grupos de Igreja, vem da grande tradição conservadora. A tradição que foi decisiva para a formação e afirmação dos direitos sociais e do pensamento social moderno. Menciono, em particular, Emmanuel Mounier, fundador e diretor da revista Esprit, pensador do que ele definiu como personalismo, centrado na concepção de pessoa contra a concepção de indivíduo. O Brasil dicotômico do PT nada tem a ver com isso.
Em que medida o discurso do ex-presidente Lula, do "nós contra eles", contribui para o acirramento dos ânimos?
Não é só Lula que se vale do maniqueísmo do nós contra eles. Essa é, praticamente, uma técnica discursiva do PT. Tanto Lula a utiliza como meus colegas petistas quando sindicalistas do ABC. Nos últimos dias, a partir da condução de Lula à Polícia Federal para ser ouvido, os ânimos se acirraram independentemente do que Lula diz a esse respeito.
Até onde a polarização pode chegar? Que consequências esse cenário traz para o país, a médio e longo prazo?
Se os grupos que se opõem ao PT engolirem a isca, poderemos chegar a extremos sem retorno. Parece-me que os alucinados que radicalizam essa polarização sem conteúdo estão apostando na possibilidade de ferir as instituições. O Brasil tem tido uma crescente presença de multidões na rua e multidões violentas, como as que lincham e fazem justiça pelas próprias mãos. Para que se manifestem falta pouco.
O senhor observa que a mentalidade petista vem acompanhada de uma lealdade quase religiosa. Por que é tão difícil para o partido e seus apoiadores fazerem a autocrítica em relação a casos de corrupção, mesmo diante de tantas evidências?
De certo modo, manifestou-se nesse sentido e com muita clareza, há poucos dias, a pessoa de um eminente fundador do PT, Olívio Dutra, que é crítico em relação aos atuais dirigentes do Partido. No meu modo de ver, para fazer autocrítica, o PT teria que reconhecer que cometeu erros graves do tipo que sempre atribuiu, não raro injustamente, aos seus opositores. Isso arruinaria boa parte da sustentação do Partido.
Apesar de estarem no poder há 12 anos, os petistas se dizem vítimas da direita e da mídia, sob o argumento de que casos de corrupção praticados pelos outros partidos seriam mais tolerados. Existe luta de classes no Brasil? Que luta é essa?
O PT usa a estratégia de defender-se acusando. Esse argumento nega o partido que se propôs ao povo brasileiro como o único partido ético. Pois, basicamente, está dizendo que se os outros são corruptos, o PT tem o direito de também sê-lo. Por incrível que pareça, muitos membros e simpatizantes do PT acham isso mesmo, que "roubar" é um modo de desapropriar a burguesia, de combater o capitalismo. Isso equivale a, praticamente, uma confissão de culpa, que pode ter um efeito bumerangue na atual situação, contra o partido. Para quem é de esquerda e perfilha a tradição marxista roubar é uma coisa, de direita, e fazer a revolução, para por meio dela impor justiça social, é completamente outra. A corrupção mantém as estruturas sociais; a revolução faz o oposto, as revoluciona.